Distantes na geografia, ocasionalmente reunidos pelo interesse, seria exagerado ver entre russos e portugueses uma História comum. Inegável, contudo, é que a têm em paralelo. Se um é extremidade ocidental da Europa, o outro é-lhe o extremo-oriente; os dois, Portugal e Rússia, se fizeram à sombra da Cruz, Lisboa da latina e Moscovo da grega, e ambos encontraram na causa da sua dilatação ideia mobilizadora da força nacional. Ambos germinaram na periferia da periferia: o pequeno condado português, na da mais europeia Castela; a Moscóvia, na da mais europeia Polónia. Ambos se fizeram, ainda, império de vários continentes: um de marinheiros, o outro de cossacos, os dois se ergueram mais por instinto de sobrevivência que vontade de dilatação e conquista. Para os portugueses, penetrar o mar foi o modo de escapar ao abraço asfixiante de Castela. Para a Rússia, pressionada por suecos, turcos e polacos, foi a vastidão siberiana multiplicador de recursos e garantia de sobrevivência. Ambos foram conduzidos ao império por obrigação e vocação, e ambos se transformaram irreversivelmente com ele. Portugueses e russos nasceram europeus: a História quis que ambos se fizessem mestiços, legando a sua cultura ao mundo e transformando-a com o que dele receberam. A Rússia ficou eurasiática, assim é e não poderá deixar de ser - a isso têm alguns chamado "mundo russo". Portugal tornou-se euro-asiático, assim como, euro-africano e euro-americano - a isso chamamos nós "Portugalidade".
As semelhanças de percurso - duas monarquias centralizadas, autoritárias e paternalistas que, animadas pelo cristianismo excêntrico do Padroado português e do Patriarcado russo, se expandiram globalmente - motivaram ao longo dos séculos curiosidade de parte a parte. Paradoxalmente, não causaram curiosidade sobre a curiosidade: isto é, estudo sério dos contactos que portugueses e russos foram mantendo entre si. É uma falha grave na historiografia das duas grandes nações cuja correcção continua por fazer.
Caso interessante de encontro entre a Rússia e Portugal é o do Infante Dom Manuel, irmão foragido - ou antes, aventureiro e viajante, pois não fugia de coisa alguma - de Dom João V. O Infante escapara-se de Lisboa ao perfazer dezoito anos, possuído aparentemente pela sede de excitação e aventura que a natureza impõe aos jovens. O príncipe correu meia Europa, causando, com relativa frequência, o alarme do governo português, que temia que este viesse a conluiar-se com potências hostis a Portugal. Se alguma vez conspirou contra seu rei e irmão, é coisa que não podemos, em rigor e dada a escassez documental, avaliar. Mas não pode haver dúvida razoável de que Dom Manuel era homem ambicioso, seguro de si e de máximo mérito. Espírito aguerrido que era, percorreu as cortes da Europa em busca de oportunidade para provar-se em batalha. Pôs-se ao serviço do primo, o Imperador austríaco, e combateu sob as ordens de Eugénio de Sabóia.
Na Sérvia, cuja capital ajudou a reconquistar para as forças cristãs, Dom Manuel ganhou fama - que, pelo que dele se sabe, será justa - de belicosidade e desembaraço militar. Os camaradas austríacos chamavam-lhe "Marte Lusitano" e "Filho de Vénus e de Marte", o que não terá deixado de motivar o Imperador a fazê-lo Marechal de Campo. Fosse como fosse, o regresso da paz entre Viena e Constantinopla fez o soldado redundante; o soldado, impaciente como sempre, abandonou a corte de Viena em busca de nova aventura.
Em 1730, feita a travessia da Hungria e da Polónia, chegava a Moscovo; logo depois, seguia para São Petersburgo. Reinava Ana, sobrinha de Pedro o Grande. A 3 de Agosto, escrevia de Haia o chefe da diplomacia portuguesa, Dom Luís da Cunha, para o primeiro-ministro Diogo Corte-Real: "A todos tem posto em grande curiosidade a jornada do Senhor Infante Dom Manuel a Moscóvia se as gazetas não mentem como de ordinário acontece". Lisboa seguiu, como não poderá surpreender ninguém, interessadamente o périplo russo do irmão de Dom João, até porque se suspeitava que aquele, ainda solteiro, lá pretendia encontrar esposa. Ao que parece, era verdadeiro o burburinho, tanto que o Infante pusera os olhos na própria Imperatriz e dava sinal de pretender tornar-se Imperador da Rússia. Não conseguiu, do que só pode retirar-se que a soberana russa não se permitiu seduzir. O príncipe português que podia ter sido Czar seguiu para Riga, e de lá para Varsóvia. Em 1734, tentaria ainda fazer-se eleger Rei da Polónia e Grão-duque da Lituânia. De novo batido nos seus intentos, retornou a Portugal e estabeleceu-se em Belas, onde sobreviveria ao terramoto de 1755 para morrer em 1766. Encontra-se sepultado no Panteão Real dos Braganças, no Mosteiro de São Vicente de Fora.
RPB
Nova Portugalidade
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