quinta-feira, 27 de junho de 2013

O PAÍS QUE TEMOS...

Sieg Heil

O bom aluno abençoado...


O adivinho!... que nunca acerta.

Os três estarolas e companhia!


As vítimas

quarta-feira, 26 de junho de 2013

CASTELO DE ALMOUROL


CASTELO DE ALMOUROL

 
 
 



 

 
CONTO DO SÉCULO XVII
 
 I

− Ai, Virgem Santíssima. Não ganha a gente para sustos! Não bastava esta praga dos castelhanos, que vem aí, dizem, um poder do mundo deles pelo Alentejo abaixo?! Ò sr, Romão Pires, donde eles estão aqui à nossa quinta é muito longe? 
Conde de Vila Flor

− Não é nada perto, não, sr.ª Brízida de Sousa! Mas lá diz o adágio: aos muito correm quebram-se-lhes as pernas… Sossegue. O sr. Conde de Vila Flor anda com eles a contas e não é para graças.
− O sr. Conde é muito bom senhor, bem sei, e de grande fama sempre ouvi dizer… Mas se ele ficasse mal agora?
− Ficávamos nós pior, isso é verdade… Melhor o há-de fazer Deus. Oh, se meu senhor e amo fosse vivo!... Não estava eu aqui posto ao canto como um estafermo!
− Ora não diga isso por quem é. O sr. Romão já andou de mais por essas guerras e tragou bem maus bocados. Descanse, descanse, que o merece… O que seria de mim sozinha nestes palácios confusos, sem pregar olho há umas poucas de noites com medo… E que medo! Fantasmas e almas do outro mundo! Ò sr. Romão Pires, diga-me: o demónio – salva tal lugar – terá poder de subverter consigo no inferno corpo e alma uma criatura baptizada e remida nas santas águas?...

− Conforme! Se não estiver em estado de graça!...
− Credo! S. Brás e S. João! Meus ricos santos da minha alma, valei-me! Subvertida em corpo e alma?! Deus de misericórdia!... Sabe que mais? Quero que me escreva já e já à sr.ª D. Madalena, contando-lho tudo isto. Ela não pode consentir que a sua criada velha uma noite destas desapareça nas garras do inimigo tentador do género humano. Jesus!... Diga-lhe que nos venha livrar deste inferno senão... eu cá por mim fujo! Primeiro a salvação da minha alma..
− Também eu não gosto nada disto, sr.ª Brízida. Mas ânimo forte e coração à larga. O demónio parece que entrou de semana connosco, e, pelo vejo, não leva jeito de nos querer largar. Desde que viemos para esta quinta…
− Desde que viemos… diz muito bem! Olhe, Brízida de Sousa me não chamasse eu, se depois da primeira noite não metesse um bom par de léguas entre o demónio e quem se preza de cristã baptizada na freguesia de Santa Catarina de Lisboa, nascida de pais católicos, tementes a Deus, e sem eiva, nem leiva de mau sangue!... Mas o amor, tenho à minha menina, coitadinha, tudo me faz suportar com paciência… Espere! Não ouviu bulha? Assim a modo de ferros arrastados pelo sobrado
− Nada. Foi cadeira, ou banco deitado no chão lá em cima. De dia não é que eles fazem das suas…
− É verdade. Guardam-se para a noite. Que noites, que eternidade noites, Senhor Deus de misericórdia! Parece que nunca a gente lhe vê o fim. E o que me diz então a estas despedidas de Maio e entradas de Junho?!...
− Não são de convidar, sr.ª Brízida! Velho sou, mas não me lembro de ano mais carrancudo. Chuvas, relâmpagos, trovões e ventanias que levam tudo pelos ares! Safa!
− E nós, coitados, neste ermo, neste desterro! Ai minha senhora Santa Bárbara! Se a tua serva e devota não deixa aqui os ossos, grande milagre será. Escute!... Agora não foi engano!... Não ouviu risadas lá em cima no vão das escadas?
− Não é nada. São os rapazes do feitor jogando às escondidas.
− Pois, sr. Romão Pires, afirmo-lhe por minha alma, que em Lisboa, quando minha senhora D. Madalena me chamou e me disse: «Brízida, a sua menina anda fraquinha e enfezada, e o irmão também, os físicos não acertam com o remédio, e fr. João entende que estas tosses de peito, assim teimosas, não se despegam senão com a mudança de ares. Bem sabe, não posso sair da cidade por estes dias mais chegados – e é assim, coitada, por causa da sua demanda – acompanhe-me os meninos, e conte que fico tão sossegada como se eu mesma fosse…». Quando me disse isto, e eu lhe beijei as mãos pela mercê, se pudesse adivinhar o que nos esperava aqui, asseguro-lhe que me encolhia como a tartaruga na concha; e viesse quem quisesse… Isto não é palácio, nem quinta, é um verdadeiro inferno. Deus salve a minha alma!
− A sr.ª Brízida não diz o que sente. Vindo a sr.ª D. Maria e o sr. D. Pedro ninguém a arrancava de ao pé deles.
− Tem razão. Ninguém! A ela criei-a, mamou o meu leite, e sua mãe não lhe quer mais, não, deixe-me ter esta presunção… A ele vi-o nascer, e os primeiros braços, que o embalaram, foram estes que há-de comer a terra. Tão pequeninos os conheci, e tão formosos e crescidos os vejo agora, que não me posso acostumar a crer, que um dia hei-de ter o gosto de os abraçar homens!... Quando me ponho a olhar para eles, parece-me às vezes que não pode ser, e que tudo isto é sonho…        
− Então!? Eles fazem-se homens, nós fazemo-nos velhos. Não há remédio. O mundo vai assim.
− Bem sei. Mas, não os acha muito delgados, muito afinadinhos? Dizem que é da idade e muito crescer, e que hão-de encorpar depois. Deus queira! São os negregados estudos, que me ralam o corpo e a alegria dos meus meninos. A sr.ª D. Maria manhãs e tardes inteiras à almofada, bordando de branco, de matiz, e a ouro. E com que perfeição!... Que dedinhos de fada aqueles! E o sr. D. Pedro? É mesmo uma dor de alma vê-lo dia e noite amarrado à banca dos livros, e que livros! Latins, gregos, e não sei que outras trapalhadas de retróricas… Quem tem a culpa de tudo, o culpado de tudo o que pode acontecer, é o teimoso do sr. fr. João, que à fina força quer o sobrinho sábio. Depois que faleceu o pai (Deus o tenha em glória!), não se nos tira de casa, e tanto há-de quebrar-me a cabeça ao meu menino, que um dia treslê. Pois olhe, sr. Romão Pires, vá com o que lhe diz uma ruim cabeça: mais vale asno vivo, que doutor morto.
− O sr. fr. João − atalhou Romão Pires, aproveitando uma pausa da sr.ª Brízida − é muito bom tio, e desde que morreu meu senhor e amo, tem sido um segundo pai para os meninos. Quer os sobrinhos prendados e de grandes merecimentos. Não lho levemos a mal. Sangue ilustre e bens da fortuna possuem eles…
− Por isso mesmo! Não precisava atanazar-mos tanto! Não mos deixa respirar. Mestres disto, mestres daquilo, música para aqui, dança para acolá… latins, filosofias, ai, que barafunda! Nem eu sei como as pobres crianças não têm endoidecido. Cá por mim já o miolo há muito tempo me tinha dado volta, tão certo como chamar-me eu Brízida de Sousa.
− Ninguém aprende sem trabalho. O sr. fr. João não é nenhum néscio…
− Nem eu lho chamo. Deus me livre. Néscio?... No convento e na corte dizem que não há outro doutor como ele.
− Pois então deixe-o, que bem sabe o que faz. Estes sobrinhos são a luz dos seus olhos, e depois tão meigos, tão aplicados…
− De mais, de mais, para a idade, sr. Romão Pires. Assustam-me. Não parecem deste mundo, nem deste século. O sr. fr. João é muito extremoso, e o que faz é por desejar o seu bem deles, mas, graças a Deus, a casa é rica e não era preciso amofinar-me tanto os meus meninos…

O diálogo de que acabámos de ser fiéis escrupulosos expositores, era travado em uma antiga sala, vasta e pouco alumiada por estreitas janelas, cujas vidraças de postigo mal deixavam coar o dia. Das paredes em reboco pendiam farrapos soltos dos panos, que as tinham forrado. Em outras partes as colgaduras aderiam ainda aos filetes, e representavam em suas pinturas desvanecidas figuras descomunais, debaixo de árvores anãs, e no meio de arbustos e flores monstruosas. Os tectos, cujas vigas lavradas inculcavam a paciência de um artífice do XV século, subiam a grande altura, enegrecidos pelo fumo da imensa chaminé de pedra, ornada de leões de mármore nas bases, e rematada com um brasão de relevo alto, orlado de ramos de silvas e amoras.
 

O sr. Romão Pires, escudeiro de quase setenta anos de idade, enxuto de carnes, e amarelo como uma cidra, erguia-se direito e aprumado como uma das faias mais direitas da quinta. Nascera e fora criado desde a infância naquela casa, e não conhecera nunca outros amos senão D. Vasco e D. Madalena. Acompanhara seu senhor, assim lhe chamou sempre, em todas as campanhas da guerra da restauração, pelejando esforçadamente ao lado dele, e assistindo aos cercos e batalhas mais notáveis desde 1642. A história dos perigos, em que se tinha achado, e a narração das proezas de seu amo, enfeitada de episódios e comentários, serviam de saboroso pasto aos serões da família, obrigada a engolir como artigos de fé todas as aventuras da nova «Tavola Redonda», e que a imaginação do escudeiro entretecia na tela interminável de sua cansativa Ilíada.
A sr.ª Brízida de Sousa, que tão avexada ouvimos queixar-se das aparições, era matrona de mais de cinquenta anos. Baixa, roliça e risonha, as suas faces lisas, cheias e coradas ainda tinham a frescura de duas maçãs rainetas. As feições, pouco acentuadas, quase infantis, sumiam-se entre as roscas das nédias bochechas, e os seus ares beatos brigavam na candura afectada com uma larga experiência de vida. Toda aquela pequena e buliçosa matrona respirava asseio, cuidado, devoção, e azáfama. Colaça de D. Madalena, e casada com um dos seus caseiros mais abastados do morgado, depois ama de leite da filha primogénita da casa, enviuvara sem filhos, nem saudades do estado, resumindo todos os afectos nos seus extremos pela fidalga, e na idolatria das duas crianças, que trazia sempre na boca e no coração.
 

Trajava por costume roupas escuras. As toucas alvíssimas, caídas talvez de mais para a testa, e o corte dos vestidos à beguina, afirmavam o programa da sua virtude inacessível. Supersticiosa, e com a memória recheada de orações, visões e devotas crendices, o seu defeito capital era ocupar-se muito com as vidas alheias, enfiando um rosário de conselhos a propósito de tudo, e mexericando, por indiscreta, amos, criados, e hóspedes, mas sem intenção ruim. Todos, se encobriam dela, quanto podiam, porém ninguém a aborrecia. Temiam-se da intemperança de suas confidências, mas confessavam a bondade do seu carácter, que era na verdade excelente.
Romão Pires, tirando a estafada repetição de suas campanhas, representava em tudo o oposto dela. Sério, como um santão, embezourado, e quase sempre com a aguda barba escondida na gargantilha, se levantasse a vista e a curiosidade para os negócios dos outros, cuidaria faltar a Deus, a si, e ao mundo. Sua boca era sagrada, e segredo que lhe caísse no peito ficava sepultado nele profundamente.
Apesar destas qualidades contrárias e talvez mesmo pelas possuir, era o conselheiro nato da sr.ª Brízida em todos os casos intrincados, e o defensor convicto dos seus medos e indiscrições. − «Boa alma! Boa alma!» respondia aos que a censuravam. «Tem o defeito de falar de mais, mas é uma santa pessoa». − Brízida pagava-lho. Para escutar a milésima edição das guerreiras epopeias do escudeiro, até fazia o sacrifício de suspender a loquacidade própria!...
O sr. Romão Pires, amortalhado na eterna roupeta e numas calças cor de pulga, comprido, e hirto, com um par de óculos de azelha montado no cavalete do interminável nariz, não desabotoava a seriedade do rosto, nem dava férias ao enfado crónico senão para sorrir à sua comadre Brízida. Aqueles olhos verdes desbotados não se animavam senão para festejar algum bom dito da matrona, cujas falas açucaradas contrastavam com a voz rouca e soturna do antigo campeão da independência portuguesa. A predilecção honesta, mas decidida, dos dois, um pelo outro, não escapara aos criados, e todos acreditavam que, cedo ou tarde, o vínculo matrimonial ainda viria apertar mais estreitamente a união de duas almas já tão íntimas.
A quinta, em que residiam havia duas semanas, situada na margem direita do Tejo, estendia as matas e charnecas até à ribeira, que separa Paio Pele da Vila de Tancos, da qual a casa, construída sobre uma colina, distaria pouco mais de dois ou três tiros de espingarda. Era palácio antigo, talvez fundado por meados do século XIV, acrescentado, e reparado pelos fins do XVI. As ameias, já derrubadas em muitos lanços de muro, proclamavam a sua velha e legítima nobreza. Duas alas terminadas por torres fortificadas em tempos mais remotos, saindo fora do corpo principal do edifício, formavam os lados do espaçoso terreiro, rasgado diante da fachada, cujas doze janelas de arquitectura irregular olhavam para ele. No terreiro se tinham jogado canas e corrido touros nos aniversários festivos dos senhores.
A casa era antiga, como dissemos, e estava muito velha. Nas juntas e articulações das pedras carcomidas cresciam tufos de viçosas parietárias. Uma arcada sombria, sustida por grossas pilastras, resguardava as entradas das duas escadas, que subiam em volta de caracol até ao primeiro andar. Outra porta, por baixo do centro da arcada, dava serventia por uma rampa para os subterrâneos alumiados ao rés-do-chão por agulheiros. No piso nobre corria uma fileira de salas nuas, frias e tristes, lajeadas de ladrilho. Sobre corredores por onde o ar e uma luz escassa a custo circulava, abriam as alcovas suas portas envidraçadas. Seguiam-se muitos aposentos, mais ou menos escuros, cruzados de passagens, de escadas furtadas, e de portas falsas, compondo desde o andar térreo até aos vãos debaixo dos telhados, uma rede inexplicável, um verdadeiro labirinto. A casa de jantar, forrada de carvalho em molduras, prolongava-se à maneira de refeitório entre dois extensos corredores. Na extremidade de um deles baixava uma escada para o jardim, na outra empinavam-se os degraus da escada, que ia para os vãos, os quais por cima corriam em largura e comprimento da casa. As torres comunicavam-se como corpo do edifício por duas portas esguias e abobadadas, aferrolhadas havia longos anos. Os eirados, meio abatidos, vertiam-lhes dentro em torrentes as chuvas caudais do Inverno.
O jardim, ornado de canteiros e de poiais azulejados, com um tanque de pedra no meio, e um sátiro hediondo entornando a urna disforme, criava algumas roseiras e craveiros degenerados entre urtigas, papoulas, e malmequeres bravos. As hortas mais cuidadas pegavam com as terras de pão, cingidas de valados altos, defendidos com piteiras. O aspecto do palácio era carregado de melancolia. Rodeado de solidão justificava em sua tristeza as queixas, que ouvimos à sr.ª Brizida. Porque escolhera, porém, D. Madalena aquele ermo para abrigo dos filhos e dos criados, quando tinha tantas propriedades mais alegres e reparadas onde pudessem respirar, longe do bulício da corte o ar do campo?
D. Madalena descendia da família ilustre dos Coutinhos Noronhas, de que fora tronco e progenitor o marechal Gonçalo Vaz Coutinho, senhor do couto de Leonil, meirinho-mor por el-rei D. Fernando da comarca da Beira. Formosa, discreta e recatada, perdera seu marido, D. Vasco Mascarenhas, mestre de campo dos exércitos de D. João IV e D. Afonso VI, havia três anos, e ainda não enxugara as lágrimas da viuvez. Em idade de merecer e de aceitar requebros, tinha-se recolhido na sua casa de Lisboa, onde não recebia senão as visitas de alguns amigos antigos da família, guiando-se em tudo pelos conselhos de fr. João Coutinho, seu irmão, grande sábio, e doutor em cânones e teologia, o qual se encarregara de dirigir a educação literária dos sobrinhos.
D. Vasco Mascarenhas, tão distinto pelo nascimento, como pelas qualidades do carácter e do espírito, unira às propriedades de sua casa, já mui rica, o senhorio da vila de Paio Pele e do castelo de Almourol, que sua mulher lhe trouxera em dote, mas quase sempre ocupado na corte com negócios políticos e no serviço das armas, só duas vezes visitara de fugida aquele solar desamparado, que principiava a cair em ruínas, entregando o granjeio das terras e cobrança dos direitos do donatário, com excessiva confiança, diziam os murmuradores, à probidade equívoca do feitor Paulo Rodrigues, camponês ávido e ladino, que mais as desfrutava como usurário, do que as geria como administrador. Avisada de que o palácio e as fazendas se arruinavam naquelas mãos viscosas, D. Madalena revolvera ver por seus olhos o verdadeiro estado das coisas, na companhia do seu irmão, fr. João Coutinho, ficando depois decidirem ambos o que julgassem mais conveniente.
Outra razão serviu de estimulo para a partida dos filhos da casa, dissimulada com o pretexto da necessidade da mudança de ares. Antigas relações de parentesco ligavam a família dos Mascarenhas com o segundo ramo dos Noronhas, cujo opulento morgado possuía grandes bens na mesma comarca, onde existia o solar dos Coutinhos. O lugar do Arripiado, que tão viçoso beija as águas do Tejo, defronte de Tancos, com dilatados campos e charnecas, pertencia ao velho D. Nuno, cujo filho único, D. Afonso de Noronha, saíra da corte para o exército do Alentejo. D. Afonso, ilustre pelo berço, e já ilustre pelo valor, vira crescer em beleza, primeiro com assombro, depois com paixão ardente, sua prima D. Maria de Mascarenhas, e não encobrira de seu pai o amor, que ela lhe inspirava. D. Nuno confiou este segredo à ditosa mãe, e ela, não podendo desejar casamento mais vantajoso, nem mais da sua escolha, antes de dar o sim, contudo, sondar disfarçadamente as inclinações da donzela. Conheceu com alegria, que D. Afonso começara a apoderar-se daquele coração, que em sua inocência principiava a balbuciar apenas as primeiras e vagas aspirações de um sentimento, que não sabia definir ainda.
Corria o ano de 1663, D. João de Áustria, à frente das armas castelhanas, tentara o derradeiro esforço, invadindo Portugal com dezasseis mil soldados, e os nossos generais, juntando as forças, mal conseguiram opor-lhe cinco ou seis mil. A cidade de Évora, que devia ser um dos baluartes da resistência, acometida no dia 14 de Maio, capitulara, depois de pouco honrada defesa. Este revés agravou os receios, e as partidas de cavalaria inimiga chegaram a insultar Alcácer. D. Sancho Manuel convocara imediatamente os oficiais a conselho, e só um voto, o dele, aprovara a conveniência de ferir a batalha, que as ordens do governo prescreviam como remédio extremo. A perícia de Schomberg, temendo como inevitável o desastre, viu nele o último precipício da independência; mas a feliz temeridade do conde de Vila Flor, fechando os olhos à prudência, aplaudia o encontro decisivo dos dois exércitos, como o único meio, embora desesperado, de salvar a província e o reino da sujeição estrangeira.
O povo de Lisboa, assustado, furioso, e alvorotado nas praças, assaltara as casas de Sebastião César, do Marquês de Marialva, e de Luís Mendes de Elvas. A todas as horas se aguardavam notícias da marcha das tropas, e todos tremiam. Um lance repentino podia sepultar para sempre as esperanças de Portugal!
A filha de D. Madalena, D. Maria de Mascarenhas, mais velha dezoito meses do que D. Pedro, seu irmão, contava nesta época dezassete anos, e sem vaidade merecia ser admirada como uma formosura completa. Talvez que o único senão de tanta beleza fosse a sua mesma perfeição irrepreensível. No rosto, graciosamente emoldurado pelas luxuosas tranças, confundiam-se os lírios e as rosas na mais mimosa frescura. A boca, fina e espirituosa, corada como um botão nacarado, breve como um suspiro, quando o sorriso a animava, tinha uma expressão adorável. Nos olhos pretos, que as assedadas pestanas cobriam às vezes de uma sombra de enlevada melancolia, a luz serena raramente se inflamava, mas sua tranquilidade lânguida deixava adivinhar, que se a paixão dormia ainda, fácil lhe seria, despertando, iluminar de súbito e vivo fulgor aquelas pupilas descuidadas. A mão parecia formada pelo modelo duma estátua primorosa. O pé estreito e arqueado pousava-se tão leve e elegante, que a vista como que involuntariamente se alçava a buscar nos ombros as asas de Sílfide. A voz tinha condão sedutor. A estatura, um pouco acima de ordinária, e flexível como hástea de uma flor, também se dobrava como ela, parecendo que o esbelto corpo de melindroso não podia com o doce peso da fronte, em que as mil graças da primeira e namorada primavera competiam umas com as outras sem se vencerem.
As posições e os gestos em sua desafectada singeleza respiravam a atracção, que o cálculo debalde se esforça por imitar. Tudo desmentia o artifício. O requebro das maneiras, o império irresistível da vista e do sorriso, e a magia arrebatadora falas e do semblante, nasciam espontâneos, prendendo os sentidos e a admiração. A formosura da alma ainda era maior, se é possível. O coração retratava-se na fronte límpida, e os infinitos tesouros de ternura e de abnegação, que por ora concentrava nos extremos de filha e de irmã, quando se abrissem a afectos mais veementes, prometiam todas as venturas ao amor ditoso. A pureza mais casta, a da ignorância sublime da infância, vestia-lhe de candura todos os pensamentos. O pejo era nela tão sensível, que afrontado não só faria corar o rosto, mas todo o corpo. Compassiva e caridosa sabia conciliar a altivez do sexo com a brandura da índole e a firmeza da vontade. Os dotes do espírito esmaltavam as qualidades morais.
Talvez não houvesse na corte dama ou donzela tão instruída na lição das boas letras. Os melhores livros de prosa e as obras mais aceites e castigadas dos poetas portugueses, espanhóis e italianos, escolhidos por fr. João, eram a sua companhia certa nas horas de repouso.
D. Maria prezava em D. Afonso de Noronha todas as distinções que o exaltavam. Valia menos, porém, a seus olhos, a ilustração do berço, do que a elevação do carácter e a fidalguia das acções, que em idade tão verde quase o haviam tornado um paladino. Não seria mulher, contudo, se não a confirmassem neste juízo a presença insinuante do mancebo, a gentileza do seu porte e a nobre expressão da sua fisionomia. Os olhos da donzela, sempre pensativos, encontrando os olhos vivos e rasgados do primo, onde riam as ilusões da vida e da juventude, nunca fugiam deles, senão a furto, e as rosas mais acesas das faces confessavam o que tentariam encobrir em vão se acaso soubesse dissimular. Nunca os lábios dos dois tinham soltado uma palavra, que revelasse o que sentiam. Amavam-se. A alma dum trazia sempre gravada a alma do outro, mas só a eloquência da vista, indiscreta às vezes, traíra o segredo. D. Afonso, não podendo por mais tempo calar a chama, que o abrasava, tinha declarado ao pai, momentos antes de meter o pé no estribo e de partir para a campanha, que este amor encerrava todo o futuro de suas esperanças, entregando-lhe a sorte dele. Sabemos que D. Nuno não perdera a ocasião, e que D. Madalena aplaudia o enlace proposto.
A chegada repentina dos filhos de D. Madalena, da aia e do escudeiro, com alguns criados velhos, colheu de sobressalto o feitor Paulo Rodrigues. Tomado de súbito, o manhoso camponês soubera disfarçar o embaraço e as apreensões, mas custara-lhe a conformar-se com a presença dos amos na casa, que havia tantos anos estava costumado a olhar mais como sua do que deles. Mandou varrer e assear à pressa duas salas e algumas alcovas do andar nobre, para os hospedar, recolheu a mulher e os filhos nos vãos do palácio, e ainda se lhe carregou mais a viseira quando soube que a senhora e fr. João Coutinho poucos dias se demorariam atrás da família.
 
No primeiro dia reinou profundo sossego, mas na segunda noite, mal a última pancada do sino batera as doze horas, romperam as diabruras nos quartos da aia e de Romão Pires. Apagaram-se todas as luzes de repente por si mesmas. Estalaram nos corredores risadas infernais. Soaram ruídos de ferros e cadeiras arrastadas. Só ao alvorecer é que tudo desapareceu.
O escudeiro, lembrado dos antigos feitos, apesar do tremor, que lhe sacudia os membros, quis fazer cara feia ao demónio. Na terceira noite levantou-se da cama, engrolando padres-nossos e ave-marias, petiscou lume, acendeu uma vela, abriu a porta de manso e saiu ao corredor, quase em vestido de banho, mas com a comprida espada nua debaixo do braço. Depressa se arrependera. Aos primeiros passos um sopro forte apagou-lhe a luz, bramidos roucos e próximos gelaram-lhe o sangue, e um clarão momentâneo e sulfúrico mostrou-lhe, envolto no sudário, um espectro descomunal e ameaçador.
Esta horrenda visão deu-lhe com os brios em terra; e, virando costas ao inimigo, logrou  refugiar-se no seu catre com a cabeça debaixo das roupas, acto de valor, em que a sr.ª Brízida de Sousa o acompanhava conscienciosamente havia muitas horas. Pela manhã os dois velhos pareciam desenterrados.
O aposento onde D. Maria de Mascarenhas dormia e uma criada, não foi mais respeitado, e a donzela, transida de susto, contou em vigília continuada as longas horas, que mediaram até ao amanhecer. D. Pedro ainda padeceu mais. Acordando sobressaltado ao impulso de mãos brutais e no meio de escuridão profunda, sentiu-se arrancar do leito e balouçar dentro das cobertas entre uivos e risadas.
Paulo Rodrigues, pelas oito horas veio saber da saúde dos amos, e, ouvindo da sua boca a lastimosa história dos tormentos e perplexidades nocturnas, contentou-se com encolher os ombros, e observou serenamente, que em vida de seu pai já tinham muito má fama as casas do andar nobre.
As noites seguintes não foram mais tranquilas. Os espectros e duendes tinham decerto reservado aquelas espaçosas salas, e os corredores, para teatro de suas diabruras. Dir-se-ia até que o tempo conspirado com eles os ajudava a aumentar o pavor dos hóspedes. Rebentaram as trovoadas de Maio tão carrancudas e violentas, que os céus se abriam em relâmpagos, e a terra tremia com o ribombo dos trovões. As chuvas caíam tão impetuosas, que as estradas ficaram convertidas em leitos de torrentes e as terras baixas em lagoas. O Tejo, cheio e empolado, alargava as margens, e suas águas batiam enfurecidas contra os penedos sobre que se ergue o castelo de Almourol, salvando por cima dos cais em cachões de espuma. Ao oitavo dia, acalmaram-se as tempestades, mas redobraram de força os malefícios nocturnos, com terror e espanto sumo dos recém-chegados.
 
 
Avexados, trémulos e fora de si, reuniram-se todos e determinaram mudar a residência para os aposentos do castelo, que não tinham desabado ainda minados pelos séculos e pela indiferença; mas o feitor, que estabelecera neles uma filha casada, dissuadiu-os do propósito, ponderando que as salas e os quartos do velho edifício dos Templários, além de frios e de mais nus, que os do palácio, não eram menos perseguidos de visões. Por horas mortas, exclamou ele, as almas dos cavaleiros tornavam aos sítios, onde tantos anos os corpos tinham vivido. Nas guaritas de pedra, pelo adarve das muralhas, e nas salas de abóbada, espectros cobertos com o manto branco, ornado da cruz vermelha da famosa milícia religiosa, apareciam repentinamente, e no silêncio da noite sentia-se o tinir das grevas e sapatos de ferro sobre as lájeas e ouvia-se a voz das sentinelas. Até raiar a aurora não se calavam na sala de armas as vozes, as risadas e as blasfémias. Escutando esta descrição horrífica, Brízida de Sousa e Romão Pires olharam consternados um para o outro, e depois de se persignarem devotamente, não querendo precipitar-se de Cila em Caríbdis, preferiram suportar as travessuras menos estrondosas dos duendes da quinta. Escreveram entretanto a D. Madalena, pedindo que os tirasse daquele purgatório o mais cedo possível, ou que viesse sem demora em companhia do sr. fr. João desalojar os espíritos diabólicos, cuja audácia zombava da água benta e exorcismos do Vigário de Tancos. Os dois honrados servos confiavam que a grande ciência do frade doutor e as virtudes do hábito de S. Domingos sairiam vitoriosas com certeza da rebeldia de Satanás e da maldade dos seus assessores.
 II

Fr. Gualdim Paes
Em 1663 campeavam ainda intactas as muralhas, as torres e a cerca exterior da fortaleza reconstruída no ano de 1170 por D. Gualdim Pais, defronte de Tancos. Cinco séculos, passando por cima delas, não haviam desconjuntado as quadrelas gigantes, nem aluído o cimento indestrutível, que mesmo ainda agora parecem desafiar a acção do tempo e o braço infatigável dos demolidores. A Ordem do Templo, transferida de Castro Marim para Tomar, a sede da sua vitoriosa milícia, estendera rapidamente pela Estremadura os membros robustos. Afonso I, liberalizando-lhe doações e privilégios, e enriquecendo com largos senhorios os monges soldados, confiara quase exclusivamente ao seu valor a guarda e defesa dos territórios conquistados nela. Ega e Soure, Pombal e a Redinha hasteavam as cores do Templo. A Cardiga, Ceras, e outras povoações, cobriam-se também com as dobras do famoso estandarte bipartido (1). As chaves das duas entradas da província estavam nas mãos dos cavaleiros. Defronte da moderna Constança, na confluência dos dois rios, o castelo do Zêzere cortava o passo aos agarenos da Beira Baixa, enquanto, surgindo do meio das águas, o castelo de Almourol fechava o caminho aos valis do Alentejo e da Andaluzia.
As ruínas, que vemos hoje debruçadas sobre o rio, contam aos que sabem interrogá-las, mais de uma página da epopeia portuguesa. Assenta sobre um ilhéu quase oval de rochedos sobrepostos, amontoados talvez ali caprichosamente pelo ímpeto de violenta erupção vulcânica, as elevadas torres do velho castelo, que as voltas do Tejo ora encobrem, ora deixam descortinar de longe, erguem-se mutiladas e enegrecidas pelo hálito mirrador dos séculos.
(1)    A balsa ou bandeira do Templo era (e continua a ser) bipartida de branco e preto com a cruz vermelha no centro e com a frase: “Non nobis Domine Sed Nomini tuo da Gloriam”
Grinaldas de heras dependuram-se em  festões das ameias desmoronadas, ou se arraigam em tufos virentes nos interstícios dos panos rotos das muralhas. O arrojo daqueles penedos, tão arremessados que o dedo de uma criança parece suficiente para os fazer escorregar com o muro que os coroa, para o leito do rio, espanta os olhos sobressaltados daquele equilíbrio ousado e quase milagroso. Areias acumuladas, e alguma terra de aluvião formaram solo, onde cravaram as raízes os choupos, os salgueiros e os chorões, cujos troncos torcidos se penduram de cima das fragas até roçarem as águas com as ramas descabeladas. Piteiras enormes orlam em algumas partes os penhascos aprumados, ou rebentam das fendas das rochas meio precipitadas. Uma vegetação activa e luxuosa veste de verdura aquele caos de moles imensas sustidas há séculos no meio da ameaça constante de uma queda instantânea.
No ano em que passaram os sucessos, que refere esta verídica história, o aspecto do sítio era bronco e alpestre, como a natureza o formou, mas a assolação não o havia visitado ainda, agravando-lhe a melancolia. Do lado do ocidente quatro torres circulares, levantadas como sentinelas de granito a igual distância umas das outras, alçavam as frontes torvas e já tostadas do tempo. Entre a segunda e a terceira rasgava-se a porta actualmente intransitável do castelo, com a sua volta de ogiva grossos batentes de castanho chapeado. No meio do guerreiro edifício avultava a torre de menagem, e logo adiante, em curvo intervalo, outra quadrada também, com os eirados cingidos de ameias. Uma janela ornada de lavores em ramos, aberta a dois terços da altura, esclarecia os aposentos do segundo piso, enquanto da parte oriental duas frestas do mesmo estilo davam claridade à sala de armas. Cinco torres guarneciam o lado do nascente. Aí a muralha subia a grande altura, acompanhando as sinuosidades do terreno. O cais ficava ao sul, e o fosso natural, que rodeava os muros, agora cego de entulho, corria profundo e despenhado. No interior da fortaleza, onde tudo hoje são ruínas e pedras soltas, enroscadas de ervas e de silvas, e onde os cactos silvestres brotam gigantescos, era o pátio espaçoso por onde se entrava para os andares. Raras e esguias frestas alumiavam aqueles aposentos, pouco espaçosos, mas enfeitados de altas e ricas laçarias. Em 1663 a obra da destruição principiava a anunciar-se apenas. Apesar de nuas, as salas conservavam a sua beleza severa, e nos eirados e adarves, se não alvejava havia mais de trezentos anos o manto branco dos Templários, se algumas heras, trepando, se balouçavam à mercê do vento, e se as torres e muralhas mostravam já a cor adusta, que é para os monumentos o que são as cãs nos velhos, um testemunho irrecusável de que viram e viveram muito, não se tinham esmorecido, contudo, nem apagado ainda nenhuns dos vestígios dos grandes dias de luta. Almourol no meio do Tejo, semelhante a um titã com metade do corpo fora das águas, ainda podia ameaçar forte e intacto, os que ousassem arriscar-se ao alcance de seus tiros. Firme e inexpugnável cuidava no vigor de sua robusta velhice zombar dos séculos, como as crianças zombam dos anos, bem alheio de supor, que na transição da idade grave para a decrepidez sua decadência seria rápida, e que, espectro de granito, suas ruínas diriam às gerações indiferentes da nossa época, que eterno e grande só é Deus!
Em uma das suas salas baixas da velha torre de menagem, toda de abóbada, e ornada de mobília rústica, estavam sentados, um defronte do outro, os dois ricaços da terra, ligados pelos vínculos do parentesco, e mais ainda pelas raízes de interesses recíprocos.
O feitor António Rodrigues ajudava piedosamente seu genro e consócio Pedro Lavareda a ingurgitar copiosas libações de um vinho, que escaldaria outras goelas menos estranhadas. Sobre a grande mesa de pau-santo e pés torneados, que servia de altar aos dois zelosos sacerdotes do Baco daqueles contornos, avultava um alentado canjirão de barro, bojudo, e cheio até à boca. Principiara a anoitecer e uma candeia enorme de três bicos, semelhante a monstruoso aranhiço, alumiava a casa escassamente. Duas espingardas, carregadas e engatilhadas, jaziam ao canto, prontas para servir à primeira voz.
António Rodrigues era corpulento, espadaúdo e reforçado. Faces largas e cheias, bastante roliças, pescoço curto e taurino, cabeça enterrada entre os ombros, peito amplo e bombeado, e pernas grossas e firmes denunciavam nele o vigor dum atleta unido a uma saúde inexpugnável. Inculcava apenas sessenta anos, mas os vizinhos do seu tempo punham-lhe mais dez sem receio de erro e acertavam. Mas era uma velhice verde e jovial, que não se inclinava ao peso dos anos, que o trabalho não desfalecia, antes reanimava, e que prometia, assim viçosa e robusta, chegar a um século completo, rindo-se dos catarros, dos reumatismos, e ainda mais da apoplexia fulminante prognosticada pelo douto Esculápio, o licenciado de Tancos, seriamente amuado por nunca ter de receitar nem um xarope àquele cliente invulnerável às chuvas, aos frios, e a todas as temeridades, a que um mancebo se não atreveria impunemente!
António Rodrigues trajava à camponesa, com asseio, mas sem basófia. Gibão e calças de baeta escura, carapuça de lã e o inseparável varapau ferrado na ponta constituíam o uniforme do activo Triptolemo. Uma grenha de cabelos grisalhos, crespos e bastos, descia a afrontar-lhe a testa, pouco sulcada de rugas. O sorriso enroscava-se perene nos beiços grossos e corados. Conservava intactos ainda, e brancos de jaspe, como os de um tubarão, todos os dentes. A barba baixava em andares sobre o peito, e os olhos castanhos, pequenos, e maliciosos, afogados em gordura, dir-se-ia que espreitavam tudo, meio encobertos. A voz aflautada causava espanto saindo daquele corpo. Finalmente, o nariz grosso e cravejado de botões vinosos, rubros como rubins, assumia dimensões quase fenomenais. A expressão da fisionomia era dúbia. O observador no primeiro relancear apenas notaria a beatitude do comilão repleto e do bebedor insaciável. Atentando melhor, e comparando o olhar, o gesto, e o riso, mudaria porém logo de conceito, divisando debaixo daquela máscara de Sileno hercúleo as feições morais significativas da astúcia, do egoísmo brutal e desentranhado, e de uma cobiça incapaz pela avidez de transigir com a honra, com a consciência e com o dever.
Pedro Lavareda representava o antípoda de seu digno sogro e tio quanto aos dotes físicos. Um helenista contemplando-os, tomaria um pelo alfa, e o outro pelo ómega. O genro, magríssimo, quase esqueleto, assustava os que o viam com o receio de que um dia lhe saltassem os ossos das tíbias e dos fémures soltos das ligaduras. Braços de pólipo terminados por mãos e dedos eternos, ombros agudos sobre os quais o fato dançava como posto em cima de um cabide, rosto comprido, escaveirado, e macilento, acompanhado das melenas esguias de um cabelo ruivo e aguado, testa nua que chega quase à nuca, peito e ventre espalmados, olhos vesgos, tortos, encovados, mas vivos ou sorrateiros, boca rasgada quase até às orelhas e beiços finos e desbotados, compunham a lúgubre, carrancuda, e exótica pessoa do lavrador mais atilado, avarento e sem escrúpulos daquelas imediações. Parecia fraco e a desfazer-se; mas as pernas delgadas, como fusos, podiam andar léguas, os braços escarnados encobriam uma força além do comum, e os olhos vesgos só viam torto para os negócios alheios.
Retrato vivo do aspecto mortificado de um franciscano penitente, o velhaco ria-se tanto para dentro como o feitor António Rodrigues se ria para fora. Usurário de nascença, hipócrita por índole e verdadeira voragem de líquidos e sólidos, digeria como um avestruz e bebia como um areal. Quando conversava, sempre em falas mansas, sabia chamar a tempo uns frouxos de tosse e umas lágrimas de defluxo, que o ajudavam muito a engolir metade, e às vezes duas terças partes das palavras, e é inútil acrescentar, que as palavras engolidas eram sempre as que o podiam comprometer ou aproveitar aos outros. Quando o caso o requeria, Pedro Lavareda, e valetudinário sadio, convertia-se numa cascata de prantos. Tinha as glândulas lacrimais devassas e chorava como um crocodilo. Ai dos inocentes que se deixavam orvalhar e amolecer por ele!... Ficavam quase sempre sem camisa. No meio daquele rosto afiado erguia-se um promontório imenso. Era o nariz adunco e aguçado na ponta, que descia quase a beijar o lábio superior. Este nariz, delgado e membranoso, rematava a semelhança que tinha aquela cara com o focinho da fuinha. Esquecia notarmos que António Rodrigues exercia com aplauso geral as funções de procurador de dois conventos de freiras, de quatro irmandades, e que seu genro acumulava com outros arrendamentos lucrativos a arrematação dos dízimos e primícias da comarca.
− Os de Paio Pele pegaram por fim? − perguntou o feitor ao genro pousando o caneco despejado em cima da mesa.
− Com língua de palmo. Eles conhecem-me, sr. tio! − respondeu Pedro Lavareda com um sorriso avinagrado.
− Bem bom!... Sabes o que me dá cuidado agora, homem? É esta gente aqui metida. Tomara vê-los pelas costas.
− Pois acabe de os empurrar para a rua, que não deixam cá saudades! − redarguiu o outro com meio sorriso ácido.
− Isso é fácil de dizer, mas… Ao cabo de tudo, Pedro, bem vês, os donos da casa são eles!...
− Que vão comendo as rendas e que nos deixem. Tão más são elas!...
− Hum! Podiam ser melhores… Esse é o meu receio. Trazemos isto muito de rastos, Pedro, e alguma língua ruim lho disse já ou lho há-de dizer.
− Invejas! Falatórios!... − acudiu o genro entre dois frouxos de tosse.
− Pois sim!... Olha, não seria melhor oferecermos um nadinha mais pelas terras e ficarmos com elas de pedra e cal, do que arrebentar-nos a castanha na boca uma destas manhãs!?...
− Nanja eu, tio! Sangue ninguém mo tira à boa feição e o dinheiro é sangue…
− Mas homem!?...
− Deixe lá, sr. sogro, não se meta a abelhudo onde o não chamam, e deixe ir a água ao moinho. Já alguém falou em lhe levantar a renda da alcaidaria?...
− Não.
− Pois não faça andar o carro adiante dos bois, e coração à larga. O que for soará.
Houve um minuto de pausa. António Rodrigues coçava a nuca com o indicador e o dedo médio da mão direita por baixo da carapuça, e rufava sobre a tábua da mesa com todos os dedos da mão esquerda. As roscas da barba sumiam-se-lhe na gola alta do gibão, e os olhinhos, homiziados entre as pálpebras meio cerradas, luziam vivos e cintilantes como os do gato matreiro que espreita a presa. Pedro Lavareda, menos apreensivo na aparência, limpava os olhos chorosos com um quadrado de pano de linho, enquanto a unha tigrina de um dos dedos da outra mão raspava uma nódoa conhecida e teimosa do calção sobre o joelho. Ambos meditavam e se entendiam sem falar. O feitor de repente levantou meio corpo de cima do mocho de pinho em que se sentava, colheu o canjirão pelas asas, sopesou-o por um instante, e emborcando-o, encheu os dois canecos de louça. Levou depois o seu à boca, encurvando lentamente o braço, e despejou-o em poucos sorvos, enquanto o sobrinho, coleando primeiro a língua pelos beiços, libou com mais vagar e com gestos de amador consumado o néctar; que espumava na grosseira taça.
− Rapaz, isto não vai bom!... − tornou António Rodrigues com um suspiro. − Anda mouro na costa, que eu bem o sinto e cá sei os botões com que me abotoo. Esta gente de Lisboa aqui não gosto nada dela.
− Ora, tio, deixe-se cismas!... De que tem medo? A aia é uma tonta, uma pega doida. O escudeiro não passa de um espantalho de pardais e os meninos… leram tanto que treleram. Mostre-lhes um campo de cevada nascida de oito dias e verá se não lhe dizem que é trigo.
− Mas atrás da pega e do espantalho tenho muito medo que venha o milhafre!...
− Qual milhafre?!...
− Frade!... − murmurou o feitor em voz abafada e com sinais de verdadeiro susto.
− E então, se vier?!... Lê no seu breviário! O sr. fr. João Coutinho sabe muito de leis e de casos, mas de lavouras não creio…
− Nisso te enganas. É capaz de dar sota ao mais pintado!... Criou-se no campo e administrou muito tempo os bens do convento.
− Ah! Ah!
− E tenho meus longes (receios) de que, mais dia menos dia, aí o temos pela proa com a sr.ª D. Madalena.
− Mau será!... − rosnou entre dentes o sobrinho declarando com a unha do polegar crua guerra a uma verruga, que lhe ornava a ponta do nariz. − Mau será, tio!... Mas não havemos de perder o sono por isso. Dizia no mosteiro, onde me ensinaram, o padre mestre fr. Hilário, que para todo o género de pecado deixou Deus remédio na sua igreja…
Houve uma nova pausa. Os dois olhavam um para o outro calados mas pouco satisfeitos.
− Então que dizes, homem?!...
− Se o frade vier… é pô-lo ao fresco, em vinte e quatro horas.
− Estás mangando, sobrinho?!... Pô-lo ao fresco? O irmão da senhora, o tio dos meninos?!...
− Tal e qual. Nem mais, nem menos!... Sacudi-lo e depressa.
− Ora! Bogalhos, sr. meu genro!... Sacudi-lo?!... Como?...
− Metendo-lhe medo.
− Ao sr. fr. João, que é rijo como ferro e valente com as armas?!... Vai dormir, Pedro, isso é sono.
− Sim senhor, meter-lhe medo, porque não?...
− Com as almas do outro mundo, aposto, como tens feito à lambareira da aia e ao néscio do escudeiro? − atalhou António Rodrigues com uma risada de escárnio.
− Com almas do outro mundo, sim senhor!... Cuida que o frade não foge?... Há-de vê-lo em camisa no pátio, mais branco do que os lençóis da cama.
− Deixa-te de histórias, Pedro!... As visões com o frade não pegam. O que apanhas é algum tiro… e olha que é caçador que não erra.

− Pois deixe-o ser. Fico por mim. Entregue-me o negócio, e verá…
− Enfim, lá sabes as linhas com que te coses… Mas toma sentido contigo! O frade é ladino, sei que vem desconfiado de nós, e tenho muito amor à pele.
− Sossegue. Eu também não tenho ódio minha. Diga-me: se fr. João vier onde o mete?
− Onde o meto?!... Porquê?
− Preciso saber.
− No quarto verde, talvez…
− Nada! Dê-lhe o quarto dos armários.
− Mas…
 
Houve outra pausa. O feitor olhava suspenso, coçando sempre a nuca. O genro ria-se para dentro, raspando a nódoa do calção.

− Tu não me dirás o que intentas fazer, Pedro? Tenho medo de ti e do teu risinho.
− Pois não tenha. Há-de tudo correr como um brinco, louvado Deus e sua mãe Maria Santíssima.
− Mau!... Se me resmungas nomes de santos, temos maroteira e grande!... Pedro!... Toma cuidado! Nem uma beliscadura, nem uma picada de agulha no sr. fr. João… Não é por ele, é por mim. Nada de graças pesadas! Não me quero ver na cadeia comido de pés e mãos. Leve antes a breca as terras.
− Ai, tio!... Não se faça teimoso, e não esteja caluniando as minhas intenções!... Valha-me a Senhora Santa Ana.
− Mau! Tornas aos santos!... Que é isto?...
− São passos.
− E vozes… Chega à fresta e vê!
 
Pedro Lavareda obedeceu.

Um vento rijo e chuveirões puxados com força bateram-lhe na cara, apenas abriu o pesado caixilho, e arriscou a cabeça para espreitar o que se passava no rio. O devoto personagem recolheu à pressa o interminável e esganado pescoço, rosnou duas interjeições apimentadas, e, enrolando um lenço por cima da gola do gibão, tornou a afrontar, porém mais abrigado desta vez da fúria do aguaceiro. Decorridos instantes de atenta observação, meteu-se para dentro, cerrou o caixilho, e veio sentar-se defronte do tio, com os sobrolhos e a boca franzidos. Trazia estampada no afunilado rosto um verdadeira elegia.
 
− Então?!... − disse o feitor já sobressaltado com a mímica tétrica do sobrinho.
− Falai no mau, aparelhai o pau!... É o frade!...
− Heim!? − bradou António Rodrigues, pondo-se de pé de um pulo e enterrando a carapuça até aos ombros. − O frade?!...
− Em corpo e alma! Escrito e pintado!... Tem razão, tio. Anda mouro na costa.
− Vem a sr.ª D. Madalena?...
− Não. Vem ele só. Isto leva água no bico, sr. meu sogro.
− Não te dizia eu, Pedro?... E agora?...
− O dito, dito. Contas com Jorge e Jorge na rua.
− Sabes que mais, homem? Vai-me cheirando tudo isto muito a chamusco. Não gosto nada da vinda do sr. fr. João, assim com este segredo… Receio…
− Valaverunt galhetas, sr. meu tio! como nós dizíamos no convento!... O caso está feio, e desta vez a raposa bem podia ficar sem rabo!... Melhor, porém, o há-de fazer Deus e sua Mãe Maria Santíssima, minha madrinha!... Primeiro do que tudo enxuguemos outro caneco. Este bom vinho alegra a vida e faz criar alma nova. Bom! Agora, a pé! Vá receber o sr. fr. João, que há-de vir cansado e aborrecido da jornada.
− E tu?...
− Eu… fico para pôr em ordem umas coisitas. Escute, meu tio! Dê ao sr. fr. João o quarto dos armários. É essencial.
− Porquê?...
− Pela boca morre o peixe!... Depois verá. Adeus! Não faça esperar sua reverendíssima e encomende-me nas suas orações à minha devota Senhora Santa Ana…
− Mau!... Aí tornas tu com a ladainha dos santos!... Pedro!... Olha lá!... Cuidado com a pele do sr. fr. João!
− Vá descansado, tio, não há-de haver novidade. Vem cear!
− Venho.
− Até logo.
 
E os dois consócios e parentes separaram-se.
 
III
 
− Com que então solto anda o demónio por estes palácios confusos, e aflitos nos vemos com as suas diabruras, Brízida de Sousa!?... Muito me contam! Mau é isso!... E você que diz, Romão Pires? Parece ainda mais pasmado do que esta boa velha!... Vamos lá, sr. António Rodrigues, diga-me: onde é o quartel-general de Belzebu? Há-de saber  decerto. É de casa!
− Eu, sr. fr. João!... Sei só que não se pode parar aqui da meia-noite em diante!...
− Ah! sabe isso!?... Já não é pouco! Pois eu lhe digo: cuidei que sabia mais. Acho-o tão roliço e anafado, que vejo que engorda com os sustos.
− O sr. fr. João gosta de brincar, mas em passando uma noite aqui!...
− Ai, meu Jesus da minha alma! Anjo bento de Nossa Senhora Aparecida! È da gente botar a fugir, ou de perder o juízo! − exclamou a sr.ª Brízida, pondo as mãos.
− Então o sr. António Rodrigues crê que esta noite haverá ensaio geral de Satanás de da sua corte, para festejarem a minha chegada?... Muito bem! Cá estamos. Cor contrictum et humiliatum Deus non despiciet! Pelejaremos com as armas espirituais, que são as melhores, e com as temporais, que também servem em certas ocasiões! Mas como vamos de ceia?... No barco o mau tempo fez-nos jejuar, e sinto-me capaz de tragar um carneiro assado! E o vinho, aquele bom vinho de 1655, ainda haverá por cá uma gota dele? Há-de haver. O sr. António Rodrigues, o melhor copo de Tancos e seus arredores, aposto que não está desprovido de munições de guerra?
 
António sorriu e coçou a nuca.
 
− A ceia está ao lume, e não se demora três credos. Quanto ao vinho… esteja vossa reverendíssima descansado.
− Sempre estive. Diga-me, Brízida, achei muito pálida a sr.ª D. Maria. Ela tem passado pior?...
− Não, senhor! Pior não. Mas, com o susto destas noites sem sono, a minha rica menina tem perdido as cores. Ela é tão delicadinha, tão fraca!... Ó sr. fr. João, a menina não podia ler um nadinha menos, mais o sr. D. Pedro, e respirar mais algum ar em Lisboa?
− Não pode, não senhor!... acudiu a frade em voz de trovão. − Meus sobrinhos não se educam para espantalhos de sala!... E você é muito atrevida em se meter a dar conselhos aonde a não chamam!...
− Ai doce Jesus do meu coração! Que disse eu para ouvir uma resposta assim?!... Sabe que mais, sr. fr. João? Não sou moura, nem perra, nem cativa. Pão em toda a parte se come, e se não fosse o amor dos meus meninos, por esta (e beijou os polegares em cruz) que não aturava uma hora mais nesta casa!
− Está bom, Brízida de Sousa, está bom! Não se inflame. Sabe que a estimo, que todos em casa lhe queremos muito… mas não me toque nessa corda. Sei que me acusam de apoquentar os pequenos com os estudos, e que eles não têm uma tosse, uma febrita, de que se não torne logo a culpa aos meus livros!   
− «Vale mais asno vivo, do que doutor morto!» − resmungou a velha ainda irada e incorrigível.
− Mas eu é que não quero na minha família asnos… vivos ou mortos, mulher! − bradou o frade fazendo-se cor de púrpura e sorvendo duas pitadas com o ruído de um furacão. − Safa! Você é capaz de fazer perder a paciência ao próprio Job!... Bem! Não falemos
mais nisso, e não faça caso dos meus repentes… Sabe que não sou tão mau como pareço e que trago sempre no coração os meus dois rapazes…
− Sei! Sei! Por isso digo a todos: o sr. fr. João berra, esbraceja, é um destemperado, mas passa-lhe logo. Cão que ladra não morde. Livre-nos Deus de uns sonsinhos que não quebram um prato, mas que ferram o dente calados…
− Obrigado pelo elogio!... ou antes pela boa intenção. Chame os pequenos. A ceia há-de estar na mesa; e protesto que me atiro a ela como Santiago aos mouros!... Vamos.
 
A ceia correu farta e alegre, e António Rodrigues foi homem de palavra, regalando o hóspede com algumas garrafas de vinho maduro, que fr. João proclamou rival do melhor que se pudesse beber à mesa de el-rei. As proezas gastronómicas do erudito dominicano tinham assombrado o próprio feitor, cujo estômago insondável sepultava sem incómodo alimentos de todas as qualidades, e se carregava de quantidades que eram o espanto e maravilha dos que assistam às suas repetidas campanhas pantagruélicas. Desta reputação merecida, António Rodrigues viu-se obrigado a arrear bandeiras. O padre mestre não comia, devorava, não bebia, absorvia! Regando de copiosas libações cada iguaria rústica, absolvendo as indigestas com um exorcismo culinário, fazendo desaparecer do prato as menos pesadas com milagrosa rapidez, dir-se-ia que a fome ibérica e peninsular, a fome de dentes caninos e apetite insaciável, tomara a figura corpulenta daquele frade, para realizar em Tancos uma verdadeira razia. Tudo tem de acabar, porém, e fr. João, exalando um suspiro, e cruzando as mãos sobre o volumoso ventre, deu a empresa por concluída, murmurando com os olhos meio fechados, e a voz ainda sufocada do esforço: Deus nobis hoec otia fecit!
 
O reverendo, na meia sonolência em que se deixou ficar, recostado no espaldar de couro da vasta poltrona, com as faces afogueadas e o barretinho de seda preta derrubado sobre a orelha esquerda, não oferecia decerto a imagem dos piedosos e extenuados monges, que em épocas de mais fé edificavam os fiéis com o exemplo de sua vida frugal e contrita. Parecia mais um hipopótamo encalhado, do que um devoto filho de S. Domingos. Os instintos animais prevaleciam, e a fadiga de uma digestão laboriosa fazia arfar aquela máquina de mastigação contínua. D. Pedro e D. Maria contemplavam o tio com admiração sincera de criaturas delicadas, que semelhantes excessos não só confundem, mas aterram. Brízida persignava-se e enfiava os bogalhos do seu rosário em oração atribulada, esperando desabar de um momento para o outro o padre colossal fulminado por um ataque apopléctico. Romão Pires ainda não pudera articular palavra, embuchada com a vista da voracidade incrível do irmão de seu amo. António Rodrigues, cujos olhinhos matreiros semelhavam no brilho duas centelhas, desfazia a nuca raspando-a desesperadamente com a unha, e dizia consigo, que o frade, medindo as forças pela alimentação, devia prostrar um touro com um murro e abrir um tigre em dois, como o faria qualquer mastim faminto ao gato descuidado, que lhe caísse debaixo das presas.
 
− Deus nobis hoec otia fecit! − tornou a repetir fr. João depois de uma pausa de alguns minutos, recuperando a costumada viveza e agilidade. − Podemos dizer com verdade que ceámos como uns padres!... Minha sobrinha! Não gostei de a ver tão triste. Que nuvem pesa sobre esse coração? São receios, ou saudades?!... Sossegue que o há-de ver são e escorreito…
− Quem, meu tio? − atalhou a donzela, distraída.
− Pois quem há-de ser senão aquele cavaleiro andante que se despediu de nós e que há-de voltar um dia destes coberto de louros… Entendeu-me agora?
− Oh, meu tio!... − acudiu ela, fazendo-se vermelha como uma rosa.
− Está bom! Está bom! Não digo mais nada… Romão Pires, sabe que os castelhanos tomaram Évora, e que a estas horas hão-de estar às mãos com o nosso exército? O que diz vossa sapiência?... Quem vence?!...
− Essa é boa, sr. padre-mestre! Quem deve vencer? O sr. conde de Vila Flor.
− Deus o ouça! Bom é ter fé!... Mas! − e a larga fronte do frade enrugou-se apreensiva, enquanto os sobrolhos descaíram a ponto de lhe cobrirem as pálpebras superiores − Deus super omnia! − murmurou.

Seguiram-se alguns instantes de silêncio. De repente a porta abriu-se com estrondo, e a longa, a defecada pessoa de Pedro Lavareda entrou impetuosamente pelo aposento, com os olhos espantados, as faces contraídas, e os cabelos ruivos espetados, representando a imagem viva do terror e da consternação.
 
− Os castelhanos!... Os castelhanos!... Eles aí vêm!...

A esta voz de pavor, e de imenso pavor, todos se acharam de pé, não menos assombrados do que perecia estar o núncio da nova aterradora.
− Os castelhanos!?... − gritou fr. João, saltando da cadeira e empunhando maquinalmente um bastão enorme, espécie de clava, que o acaso lhe mostrou encostado a um canto.
− Os cas… te… lha… nos! − gemeu Brízida faltando-lhe os joelhos e erguendo as mãos.
− Os castelhanos?! − exclamou António Rodrigues, arrancando da cinta a longa navalha de ponta e mola e floreando-a como uma espada, enquanto Romão Pires sacudia da bainha a durindana decrépita e preguiçosa.
D. Maria, branca de cera e silenciosa, encostou-se à mesa para não cair. D. Pedro, pelo contrário, com o rosto mais animado, os olhos reluzentes e a fronte levantada, apertou o punho da pequena espada de corte, e deu alguns passos como se quisesse sair ao encontro do perigo.
− Os castelhanos?! − tornou a bradar fr. João. − Às armas! Sr. António Rodrigues, chame os criados!... Façamos de Tancos e de Almourol uma segunda Aljubarrota!...

Dizendo isto, limpava a testa inundada de suor, e fulo de raiva e de impaciência batia o pé como o corcel insofrido escarva o chão desejoso de soltar a carreira.

− Mas não seria bom, meu tio, sabermos primeiro o que há, quem deu a notícia, e onde estão os inimigos? − observou D. Pedro, em voz mansa e com extrema serenidade.
− Do manus! Rem acu tetegiste, puer! (Concordo. Puseste o dedo na dificuldade, menino) − gritou o frade, sentando-se comovido e ainda trémulo. − Façamos conselho! Sr. António Rodrigues, em primeiro lugar: quem é e como se chama este correio de más novas?...
− É meu genro e meu sobrinho. Chama-se Pedro Lavareda.
− Ah! Ah! Pedro Lavareda!? Nome incendiário e perigoso em pessoa mais seca do que um cavaco!... Mas vamos ao que importa. Chegue à fala o sr. Pedro… Lavareda! Quem lhe deu a má notícia que nos trouxe?...
− Um almocreve do Crato, que saiu de lá a bom fugir!...
− E que disse o almocreve?...
− Que os nossos foram derrotados, e que ficaram todos ou quase todos no campo, e que as guardas avançadas de D. João de Áustria estavam a entrar no Crato!...
− Ah! Pareço-me carnificina de mais!... E aonde se deu a batalha?
− Não mo soube dizer.
− Hum! E o seu almocreve onde está?...
− Partiu caminho de Lisboa.
− Oh! E não sabe mais nada?
− Mais nada, sr. padre-mestre.
− Pois sr. Pedro… Lavareda, o seu nome queima!... Quer um conselho de amigo?...
− Se vossa reverendíssima tiver a caridade de mo dar!...
− Tenho sim, senhor. Mande passear o seu almocreve, durma sobre o caso, como nós vamos dormir, e creia que amanhã acorda convencido de que engoliu uma peta mais comprida do que a sua pessoa, o que já não é pouco.
Os olhos felinos de Pedro, se fossem punhais, tinham varado o frade, mas como o não eram, contentaram-se com a expressão humilde e hipócrita de uma anuência servil, ao passo que os lábios franzidos arremedavam sofrivelmente um sorriso boçal.
− Macte puer! − gritou fr. João, batendo no ombro de D. Pedro. − Tiveste mais juízo tu só, do que nós todos!... Isto é mentira e mentira mal armada. Os espanhóis no Crato!... Uma batalha sem lugar sabido!... Um almocreve invisível… Meninos, sosseguem! Tia Brízida, alma até Almeida! Romão Pires, enfie-me na bainha esse eterno chifarote, espanto e censura viva das espadas de hoje!
− Então vossa reverendíssima já não quer que ponha de aviso os criados? − disse António Rodrigues, que tivera tempo de trocar algumas palavras com o genro, colóquio que, apesar de curto, não escapara a fr. João.
− Não, senhor. Deixe-os descansados! Bem bastam logo as almas do outro mundo!... Sabe que mais? Sinto-me moído, e uma boa cama depois de uma boa ceia é o melhor remédio para estas moléstias. Onde é o meu quarto?
O feitor esgueirou um volver de olhos interrogador ao sobrinho, que lhe respondeu com um aceno quase imperceptível de cabeça, e, pegando em um maciço castiçal de prata denegrido, precedeu a espécie de procissão de toda e família até ao aposento, onde o douto dominicano havia de passar a noite. A porta abria-se no topo do comprido corredor do centro; a câmara de D. Pedro ficava-lhe à esquerda, e o pequeno camarim de Romão Pires à direita. Metiam-se de permeio dois quartos fechados, e seguia-se a sala onde D. Maria dormia, tendo ao pé o leito de Brízida de Sousa. O aposento, onde António Rodrigues conduzia fr. João, nada inculcava de notável. Era uma casa vasta, de três janelas, duas de peito e uma de sacada, cujas paredes abertas em partes conservavam ainda a par de largos pedaços das colgaduras de couro, que em melhores dias as tinham ornado, altos e grandes armários de pau-santo. Os tectos altos e enegrecidos e o pavimento carunchoso, gemendo e estalando com o peso dos passos, atestavam a velhice e o desamparo. Um leito antigo, enorme, com sobrecéu e cortinas outrora verdes, um velador de pau-santo arruinado, e um contador, ainda mais antigo, completavam com três, ou quatro cadeiras coxas dos pés, ou mutiladas dos braços, a mobília nada cómoda, nem opulenta! Cousa singular! Neste quarto, em que a destruição minava e esfarelava tudo, as únicas coisas intactas e bem conservadas eram alguns painéis grandes, retratos de corpo inteiros de guerreiros, damas, e monges, pintados a óleo, e metidos em soberbas molduras de carvalho, lavradas de talha alta.

O padre-mestre rodeou com os olhos toda a casa, e perguntou, sorrindo-se, ao feitor, se ela passava por ser também vexada pelas almas do outro mundo. António Rodrigues abaixou a sua imensa e redonda cabeça e Brízida benzeu-se devotamente.

− Bem!... Nesse caso é preciso estar armado e vigilante para a batalha! Se escaparmos aos castelhanos do Crato, não quero que acabemos nas garras dos trasgos e diabretes de Tancos. Sr. António Rodrigues, faz favor! Mande trazer para aqui o meu alforje, que ficou na sala de entrada. Sr. Pedro Lavareda (esquisito nome!) é bom caçador por certo, e há-de ter uma espingarda de mais. Eu também gosto de dar o meu tiro de manhã cedo às perdizes e às calhandras por essa charneca. Conto levantar-me com o sol, e dar um passeio pelas fazendas, para tornar a ver estas terras em que não ponho os olhos há um bom par de anos. Para não ir com as mãos abanando, levarei a sua espingarda… Não a hei-de tratar mal, descanse!...
− Essa é boa, sr. fr. João! A espingarda, eu e tudo o que mandar estão às ordens de vossa reverendíssima.
− Muito obrigado!... Olhe, não se esqueça de me trazer um frasquinho de pólvora.

O tio e sobrinho saíram, e o frade, chamando de parte D. Pedro e Romão Pires, e pondo as mãos no ombro de cada um deles, disse-lhes em voz baixa:
− Latet anguis! Anda aqui novelo! Este sr. Lavareda, com aquela face compungida de Longuinhos, parece-me fino como um alambre… Os dois, ele e António Rodrigues, o tio e o sobrinho, estão conjurados contra nós… Porquê e para quê? O tempo o dirá. Olho vivo, pois, Romão Pires! Se lhe aparecer visão, ou espectro, receba-mo às cutiladas. Eu cá espero a pé firme os que vierem visitar-me, e a água benta, que lhes deitar, há-de chamuscá-los deveras… Muito bem!... Aí vêm os dois velhacos.
De feito o sogro e o genro chegavam, um com o alforje, e o outro com a espingarda e o frasco. Fr. João falou um pedaço com eles, sempre com a boca cheia de riso, pediu uma candeia grande para se alumiar até pela manhã, e despediu-se de todos, sem dar mostras da menor desconfiança. 
 
− O padre prega-ta na menina do olho, sobrinho! Toma conta! − disse António Rodrigues com o rosto carregado.
− Veremos, sr. meu tio.
− Guarda-te de ele te pôr as mãos. É capaz de estourar um boi.
− Melhor o fará Deus.
− Boas noites.
− Santa Ana e minha madrinha Nossa Senhora o levem na sua santa guarda.
− Sentido! Nem uma beliscadura! 
 
Enquanto os dois honrados camponeses conversavam em voz baixa no fim do corredor, fr. João Coutinho passava revista minuciosa ao quarto e parecia ficar inteirado de que as paredes e os armários não encobriam portas falsas, nem os sobrados alçapões. Abrindo o alforje depois, tirou de dentro um par de pistolas. Verificou a carga de ambas, renovou as escorvas, e passando à espingarda, carregou-a com todo o cuidado, meteu-lhe uma bala e pousou-a engatilhada à cabeceira da cama. Feito isto foi à porta pé ante pé, descerrou-a de manso, e em passo subtil encaminhou-se ao camarim de Romão Pires, onde se demorou. À volta − davam as onze horas − achou tudo como o deixara, rezou pelo seu breviário, e despindo só o hábito, abafou-se, aconchegou as colchas, recostou a cabeça, e, decorridos instantes, os roncos assobiados de um sono profundo anunciavam que tinha esquecido os castelhanos do Crato, as almas penadas e os virtuosos manigrepos rurais, cuja lealdade não julgara de bons quilates.
Teria repousado duas horas, quando despertou sobressaltado. O leito, pesado e maciço, arfava balouçado como um barco sobre vagas inquietas. O frade entreabriu os olhos. A vela do castiçal estava em um terço, e a luz da candeia brilhava esperta.
O quarto continuava deserto e silencioso. Entretanto o leito não parara de dançar, e, facto mais singular ainda! a roupa da cama fugia devagar, sem aparecer mão ou braço que lhe tocasse. Fr. João deixou-se ficar, tomando somente uma posição que lhe consentisse saltar ao chão de um pulo para travar a luta com os duendes e espectros. Tinha as duas pistolas sobre o velador à cabeceira e a espingarda ao pé. Entretanto, apesar de animoso e resoluto, o suor principiava a borbulhar-lhe na testa e um calafrio suspeito a correr-lhe a espinha dorsal.

− Isto não vai bem!... Queria antes ruído, grilhões arrastados… a cena do costume. Esta calada e estes empuxões invisíveis… sinceramente seria de fazer tremer as carnes, se eu não soubesse!... Credo!... Lá se foi a roupa até aos pés da cama… Não gosto da graça! Que é aquilo? As pinturas andam!?... Oh!...

Aqui pôs termo ao solilóquio, e sentando-se na cama, com os poucos cabelos que lhe restavam, eriçados em volta da calva, com as feições contraídas e a boca pasmada, cravou as pupilas cinzentas e dilatadas no painel, que lhe ficava fronteiro e que representava um cavaleiro da Idade Média coberto de toda a armadura, mas com o rosto sem viseira e os olhos ameaçadores. Aquela figura severa, como que destacada da moldura, parecia mover-se por si lenta e lugubremente. Fr. João quis duvidar do testemunho dos sentidos, e convencer-se de que era vítima de uma ilusão. Esfregou as pálpebras, beliscou os braços para despertar a sensibilidade, mas o retrato continuava a adiantar-se, e um sorriso tétrico como que lhe franzia os beiços. Ao mesmo tempo os ouvidos afiados do dominicano colheram, não sem grande pavor, o som amortecido de ferros que rangiam, e um gemido longo e soturno, semelhante ao gemido doloroso de aflitivo estertor.
 
− Vade retro, Satanás! − murmurou saindo da cama cheio de terror. − Ne nos inducas in tentatione.
Apenas soltara a meia voz estas palavras, um sopro, semelhante a furacão medonho, engolfou-se pelo quarto e apagou de golpe as duas luzes.
 Fr. João recuou até às cortinas do leito, e sentiu vergarem-lhe os joelhos e fugir-lhe o ânimo. Estendendo a mão nas trevas maquinalmente encontrou uma das pistolas pousadas sobre o velador, e os dedos apertaram também maquinalmente a coronha.
De repente um clarão sulcou a escuridade, enchendo o aposento de luz sulfúrea, e no meio de chamas lívidas, surgiu e cresceu uma forma gigantesca envolta nas dobras do sudário branco e flutuante. Esta figura descomunal, cuja cabeça era uma caveira, lançava chispas pelas cavidades dos olhos e acenava com os longos ossos do esqueleto. O frade tremeu, e acudiram-lhe aos lábios descorados as preces e os exorcismos recomendados pela igreja contra os malefícios infernais. Mas as armas espirituais não produziram efeito, e, apesar da perturbação momentânea, tornou a tomar corpo no seu espírito a ideia de que podia ser aquele espectáculo uma visualidade, ensaiada para zombar da sua boa fé. Revestindo-se, pois, de valor e decisão, apontou rapidamente ao vulto, que tinha diante, a pistola, que não largara da mão e disparou-a. Observando que o tiro não causara abalo no fantasma, pegou depois na outra pistola e com pontaria mais segura desfechou o gatilho. Uma risada estridente respondeu ao estrondo da explosão, e o espectro, mostrando as balas, arremessou-as ao chão, onde o padre-mestre as ouviu rolar. Logo em seguida o clarão sumiu-se de súbito, espessas trevas envolveram o quarto. Fr. João, quase desmaiado, caiu em uma das cadeiras próximas do leito, tolhido por um tremor geral em todos os membros e paralisado na fala e nos movimentos pelo mais profundo terror.
Ao mesmo tempo as hostilidades diabólicas não eram menos activas e violentas nas câmaras dos outros hóspedes. Romão Pires, apenas se deitara e escondera a cabeça debaixo da roupa, com premeditação pouco em harmonia com os brios de suas faladas campanhas, sentiu apagar-se-lhe a luz, e puxarem-lhe pelos pés o magro e aprumado corpo até o estatelarem de pancada e sem dó nas tábuas do sobrado. O grito de medo e de dor, que soltara estremunhado, teve em resposta um coro de risadas em falsete. Brízida de Sousa acordou espavorida ao frio gelado de um verdadeiro regador de água que lhe entornavam sobre a cabeça, e saltando por a casa em roupas menores, e com a boca  escancarada, para bradar, era colhida no ar por mãos pouco caridosas e nada leves, que de empurrão em empurrão a levaram aos tombos até ao corredor, onde veio encontrar em anágua o honrado escudeiro, tiritando de susto e com uma das mãos em cada face esbofeteada pelos duendes, com vigor que bem acusava uma força sobrenatural. D. Maria, encolhida e semi-morta de pavor, não padecera senão o terror de ouvir estalar ao pé do leito gargalhadas dissonantes, e arrastar ferros.

No quarto de D. Pedro, os trasgos haviam sido menos felizes, porque tinham chegado mais atrasados. Dotado de ânimo varonil e reflectindo, sereno em presença do perigo, e pouco disposto a acreditar na intervenção dos poderes infernais, o mancebo resolvera velar a noite sem se despir, e com a espada nua ao lado, tinha-se entregado à leitura de um livro novo, que em breve lhe absorveu a atenção. Feriu-lhe de repente o ouvido a matinada das investidas no corredor e nos aposentos próximos. Apagando a luz, e empunhando a espada, aguardou silencioso.
A sua porta abriu-se, de feito, pouco depois, e pareceu-lhe aperceber dois vultos na escuridão. Deixou-os adiantar, seguiu-os, e quando um se debruçava sobre o leito vazio, e o outro, assoprando num búzio tirava dele sons roucos e medonhos, caiu às pranchadas sobre o músico de Averno, ao qual o instrumento escapou dos dedos, e que, amedrontado, principiava a revolver-se pela casa, gritando como um simples mortal derreado por uma sova. O outro fantasma volveu logo em auxílio do agredido, mas uma cutilada de D. Pedro, aparada no braço ao que pareceu, deitou-o pela porta fora como um vendaval, enquanto o companheiro tomava o mesmo caminho, mas de rastos e gemendo.     
D. Pedro, decorridos instantes, feriu lume, acendeu a vela do castiçal e a candeia, e examinou atentamente o campo da batalha. Jaziam no chão um búzio dos usados pelos ranchos da apanha da azeitona, um lençol com lágrimas de tinta encarnada, e uma caveira de papelão pintada de amarelo.
O mancebo sorriu-se. Aqueles despojos eram o corpo do delito e ao mesmo tempo documento vivo da conspiração tramada. Algumas gotas de sangue, caídas no pavimento desde metade da casa até à porta, provaram-lhe que um dos autores do drama nocturno retirara ferido e assinalado. D. Pedro pegou no castiçal, e seguindo o rasto de sangue pelo corredor, notou que parava no topo, onde só existia uma parede grossa, sem nenhuma saída aparente. Informado do que desejava verificar, voltou atrás, e encaminhou-se ao camarim de Romão Pires. À porta viu duas figuras brancas ajoelhadas. Deteve-se um pouco até se afirmar. A velha aia e o dorido escudeiro, ambos de joelhos, e ambos transidos de medo e de frio, esgotavam um defronte do outro todo o vocabulário de rezas e de interjeições atribuladas, sem se atreverem a volver aos aposentos. D. Pedro, não podendo suster o riso, falou-lhes, animou-os, e, mandando-os acabar de vestir, passou a visitar a câmara de fr. João.

O frade ainda jazia na mesma posição. Conservava-se quase exânime na ampla cadeira. Vendo entrar o sobrinho com o castiçal em uma das mãos e a espada nua debaixo do braço, estremeceu, e esbugalhou os olhos, mas não se moveu.
D. Pedro aproximou-se da mesa, acendeu a outra vela, e sem proferir palavra examinou cuidadosamente o aposento. Nenhum indício! O inimigo triunfante não deixara despojos. Terminado o exame, pôs o castiçal em cima do velador, colocou a espada ao pé do castiçal, e, volvendo para junto da cadeira, donde o tio, como paralisado, observava tudo silencioso, disse-lhe:
 
− Mas o que foi isto?!...
Fr. João respondeu com um suspiro, e correu a mão pela testa ainda inundada de suor.
− Estas pistolas disparadas, estas balas no chão!... Não me dirá o que sucedeu?!...
Outro suspiro mais alto.
 
− Por onde entraram eles?...
O dominicano, que a vista do sobrinho ia reanimando a pouco e pouco, meneou a cabeça com tristeza, fez um esforço para levantar meio corpo da cadeira, e apontou  com o dedo para o quadro, cuja figura vira minutos antes soltar-se da moldura, e encaminhar-se para ele.
− Ah!... Foi por esta porta?... − observou o sobrinho, pegando no castiçal e correndo a luz por todo o quadro de cima a baixo. De repente exclamou: − Olhe?!
− O quê? − disse o frade, pondo-se de pé, mas tão abatido e trémulo, como se acaso se levantasse convalescente de longa enfermidade.
− Venha, meu tio, e veja!
De feito um dos enfeites de talha mais elevado movia-se como um botão debaixo dos dedos do mancebo, e a pesada moldura, cedendo à pressão, abriu-se lentamente.

− Ah!... − exclamou fr. João.
− Aqui tem a porta… e o segredo de tudo.
− Velhacos! − bramiu o dominicano irritável, recuperando repentinamente as cores, a elasticidade dos membros, e a viveza dos olhos.   
 Mas baixando a vista, deu com as duas balas das pistolas ainda no chão, e uma nuvem turvou-lhe outra vez o rosto. Mostrando-as ao sobrinho, narrou-lhe o que sucedera e ouviu da boca do mancebo a história, da sua luta com os duendes. Fr. João ficou mudo e suspenso por momentos, semelhante a um imenso ponto de interrogação.

− Saiu daqui depois de carregar as armas? − perguntou D. Pedro.
− Cinco minutos quando muito. Cheguei ao camarim de Romão Pires.
− Foi o que bastou. Não mexeu na espingarda? Está certo?
− Como de te estar vendo.
− E meteu-lhe uma bala de calibre?
− Seguramente.
− Muito bem, quer ver?
E D. Pedro, pegando na vareta, descarregou a arma, tirando as buxas e a pólvora. Da bala não achou notícia.
 

− Ah! tratantes!... − rugiu o frade, fechando os punhos, e rangendo os dentes, pletórico de cólera.
− Podiam atirar-lhe com três balas aos pés em vez de duas! Tinham tido o cuidado…
− De mas empalmar?! Sobrinho! Juro que hão-de pagar-mo caro!... Só atanazados!
− Dá licença que lhe dê um conselho?
− Dize, rapaz. Estás um homem, e tens mostrado valer mais, do que nós todos.
− Se quer apanhar o rato na ratoeira, não faça bulha.
− Bem! Bem! Do manus! Qui nescit dissimulare nescit regnare − acudiu fr. João, esfregando as mãos. − Ah! patifes! O que eles se terão rido à minha custa!...
− Deixe! Riram-se hoje? Amanhã chorarão! Boas noites, meu tio. Sossegue, que bem o precisa.


 
*++Fr. João Duarte - Grande Oficial/Comendador Delegado da Comendadoria Stª. Maria do Castelo de Castelo Branco