quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Do Império Português


A Casa portuguesa, este velho solar português feito pela espada dos Reis nos campos de batalha, pela sua astúcia nas conferências diplomáticas, e pelo sangue generoso e o sacrifício ilimitado dos que, dentro dos seus limites nasceram, e, vassalos daqueles Reis se orgulharam de ser, este velho solar português deita, pelas bandas do Oriente e do Norte, para os solares de Espanha.
Disputaram, uns e outros, durante três séculos. Portugal acabou, finalmente, por convencer os vizinhos, da sua personalidade, e trancou as portas e as janelas da sua casa que davam para as terras do vizinho, e, seguro de que este não poderia facilmente assaltar-lhe as janelas e arrombar-lhe as portas, voltou-se para o mar misterioso e nebuloso, de trilhos ignorados ou esquecidos, de praias desconhecidas, e de limites quiméricos. Voltou-se para o mar; e firmando-se na tensão profunda que constituía fundamentalmente o seu querer viver, afirmou essa vontade na mais tenaz, na mais inteligente, na mais bela das realizações.
Debruçado, no Promontório de Sagres, sobre o mar infinito, estudando, na sua casa de Sagres, com nautas, astrólogos e cartógrafos, os segredos do Espaço, o Infante traçava os primeiros delineamentos decisivos do novo Império cristão. Ele corporizava as aspirações latentes do seu povo, que já fora a Ceuta desfraldar, nas muralhas dos infiéis, o estandarte da Cruz!
Ia gravada nas velas das nossas caravelas, ela que já andava nos dinheiros do tempo do nosso D. Sancho I.
Nos padrões que os nossos navegadores e descobridores implantavam, a marcar o nosso direito e a nossa posse, era ela que se alçava a dominá-los. E foi ela que um dos maiores Reis da nossa história escolheu para a sua empresa – com a legenda: in hoc signo vinces.
Se tirarmos ao Imperialismo português a sua característica cristã – tudo se torna incompreensível na acção imperialista dos portugueses de 1400 e 1500.
Nós não nos abalançámos à realização da Epopeia – como os corsários franceses, como os piratas ingleses, por apetite do roubo. Não nos deitámos a realizar a Epopeia marítima, por despeito, como os navegadores de Castela. Não foi Cartago, não foram os romanos, os nossos modelos, os nossos mestres. Não!
No continente, durante os três séculos de consolidação política, se fomos, em face de Castela recalcitrante, portugueses ciosos da nossa honra, do nosso nome, e da nossa independência – quero dizer, da honra, do nome e da independência dos nossos reis, fomos também cruzados cristãos, perante a afronta da mourama.
Cruzados fomos, e cruzados continuamos a ser, em África, em Índia, em América, em Oceânia – porque o que primacialmente nos levou às paragens mais remotas, e nos sujeitou aos riscos mais graves, foi o sentimento cristão.
Mas muito se engana quem vê na nossa acção de cruzados, jeitos de anunciação de foot-ball, de golf, ou de pedestrianismo cristão.
Fomos cruzados, para servir a Fé. E foi para a servir, que fizemos o Império – o Império cristão que ninguém mais fez.
Quando o Infante, em Sagres, continuando a obra que, meio século antes, D. Afonso IV semeara, viu o caminho para a Índia, e na consciência plena da sua vontade, procurando-o, guiou o povo português para essa meta de glórias, era a mais exaltada fé católica que o inspirava, e se tornava de ser de toda a sua vida.
Civilização essencialmente cristã, a civilização portuguesa tinha uma força estimulante interna, uma ideia-força que vencia e venceu todos os obstáculos: a propagação da fé católica.
Só o nega quem ignora ou finge desconhecer os documentos.
Entre tantos, oiçamos este testemunho bem de valor: é de Francisco de Almeida, o cronista do mais deslealmente caluniado dos nossos reis: «Mas como o principal fruyto que os Reis deste reyno pretenderão, e desejarão sempre nas terras que desubrião e conquistavão de novo, foy a conversão dos infieis, e a dilatação e acrecentamento da nossa santa fé catholica isto fez a el Rey dom João pôr os olhos com mais atenção na povoação do Brasil...» (IVª parte, cap. 32).
Só por milagre quase inacessível às inteligências de hoje, paganizadas, obscurecidas, decrépitas, só por milagre se pode explicar que um povo minúsculo – meia mão de gente! – tivesse sido capaz de estender o seu domínio, o seu Império, sobre milhões e milhões de almas de todas as raças, de todos os tons psíquicos, espalhadas pelas mais longínquas terras.
Em África, primeiro, em Ásia, em América, em Oceânia – por todo o orbe, a Cruz de Cristo portuguesa se instalou dominadora, e venceu todas as batalhas que lhe deram.
Império tão vasto, que o Poeta pode dizer dele, dirigindo-se a D. Sebastião, que era um «alto Império» que

O sol, logo em nascendo, vê primeiro;
Vê-o também no meio do Hemisphério,
E, quando dece, o deixa derradeiro.
(I, 8)

O Império português é um milagre de Deus!
Porque pudemos realizá-lo? Porque conseguimos levá-lo a termo, no espaço relativamente curto de século e meio?
Primeiro, porque acreditávamos na nossa missão – na nossa missão de cruzados, de dianteiros da Fé, de soldados de Deus. E a primeira condição para se poder realizar bem uma obra consiste em acreditarmos em nós, e nela. Acreditar que somos capazes de a fazer, e acreditar em que ela tem de se realizar. Os portugueses dos séculos dos Descobrimentos acreditavam na verdade católica – morrendo por ela, sob os golpes dos alfanges, nas muralhas de Diu, ou nas praias da América. Acreditavam em Deus, porque não os tocara ainda a malária da Dúvida racionalista, e a lepra calcinante do Livre Pensamento.
Acreditavam em que eram portadores da Verdade – daquela Verdade impassível ante todos os ataques, e invulnerável diante de todos os ultrajes. Acreditavam em que eram portadores do verbo divino, por amor do qual a morte é gloriosa, e todo o sofrimento é prazer.
Eram raros viçosos daquela árvore de maravilhas que se chamou Nun'Álvares; eram filhos obedientes daquela Mãe transumana que se chama Igreja Católica.
O ideal supremo que os guiava não era o tirar aos outros o que os outros tinham; nem rasoirar os valores; nem ombrear com a divindade: o seu ideal supremo era servir e amar a Deus. E todos serviam e amavam a Deus, desde os reis, nos paços, aos camponeses da serra lavradia; desde os pastores das serras agrestes, aos nautas destemidos, desde Camões, poeta de génio, a Albuquerque, guerreiro de raça.
Andava longe a Reforma bastarda; e quando se aproximou, – previdente, oportuno, e cumpridor dos seus deveres, D. João III opôs-lhe uma milícia – a Companhia, e um cordão sanitário, esplêndido, para o tempo – a Inquisição.
Ainda não se pressentiam os rumores da Revolução sangrenta das sarjetas e prostíbulos, a cujo serviço se puseram os sábios da Enciclopédia, e as elegantes mièvres dos salões de Paris, e das ante-câmaras de Versalhes...
Tudo isso vinha longe – e o solar português, rezando, ao anoitecer, as Ave-Marias das Trindades, e fazendo o sinal da cruz, ao surgir da alvorada, cria em Deus, e servia Deus. Se era forte e puro na sua fé, era forte e leal na sua vida cívica. Os seus reis foram sempre paternais na justiça, justiceiros no prémio ou na pena. E o povo a quem as loucuras do homem despolarizado não tinham proclamado ainda soberano, o povo que ignorava o poder bruxo dos papelinhos do voto, na governação do Estado – o povo unia-se à volta do seu chefe natural, daquele que não saíra das tropelias e malabarices de uma urna, mas viera dos desígnios impenetráveis da Providência, para mandar, e ser obedecido, para guiar, e ser respeitado.
O povo português dos Descobrimentos, o povo português que fez o Império desconhecia os génios miríficos que as plebes geram, no tumulto das arruaças, e no rascante voejar dos impropérios. Todo ele era uma família – unânime na crença religiosa, homogénea no sentimento de obediência.
Ignorava a panaceia mórbida dos Direitos, porque vivia dentro do quadrado firme dos Deveres.

Alfredo Pimenta in «O Império Colonial como factor de Civilização», 1936.

DEUS - PÁTRIA - REI

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