quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Lamentável exercício de amadorismo

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Li há tempos um lamentável ensaio histórico intitulado 1808 - Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil, da autoria de Laurentino Gomes. Não se tratando de mestre do ofício, mas de jornalista, Laurentino Gomes parece desconhecer a delicada complexidade da matéria, pelo que o seu trabalho resulta num atrevimento e num abuso que convém desmascarar.

Desde meados do século XVIII que Portugal se encontrava solidamente associado ao poder marítimo britânico ascendente. Aliado da Inglaterra na Guerra dos Sete Anos(1756-1763), exibiu ao longo do último quartel do século permanente disponibilidade para assistir às necessidades britânicas no Atlântico, quer durante a Guerra de Independência dos EUA e, depois, durante a Campanha do Rossilhão(1793) contra a França revolucionária.

Quando em 1806 Napoleão decretou o Bloqueio Continental ao comércio inglês, Portugal não o acatou, pelo que foi invadido por um exército franco-espanhol. A família real portuguesa abandonou solo europeu e transferiu-se para o Rio de Janeiro, mantendo a beligerância portuguesa ao lado da Union Jack. Ao contrário da família real espanhola, que foi capturada por Napoleão e substituída na governação por um irmão do imperador francês, bem como da holandesa Casa de Orange, que se viu obrigada a fugir para Londres, Portugal manteve a cadeia de comando e intocado o seu ainda vasto império ultramarino. Para Portugal, a submissão aos desígnios de Napoleão significaria a redução do Reino a mera dependência à mercê dos jogos políticos do imperador francês, assim como a consequente hostilidade britânica que conduziria à imediata perda do património colonial, no qual o Brasil era considerado como fundamental à própria sobrevivência da independência do país. Londres estava consciente dos factos e da ameaça que representava a rendição portuguesa, pelo que em conformidade agiu prontamente no sentido de forçar a saída da corte portuguesa dos seus domínios europeus, transferindo a sede da Monarquia para o seu vasto, rico e seguro domínio sul-americano. Consistia num projecto antigo e que já fora pensado durante a Guerra da Restauração da Independência (1640-68) e dos Sete Anos (1756-83), garantindo a sobrevivência de Portugal e a manutenção de um precioso ponto de apoio às acções britânicas, sempre tendentes ao impedimento de qualquer hegemonia continental na Europa.

A transferência da administração consistiu num grande e complexo empreendimento. Foi necessário o transporte dos elementos necessários à reconstituição do Estado no além-mar. Além da família real, partiu uma numerosa comitiva de notáveis, além de quadros governamentais, a totalidade do tesouro público – o que pressupôs incontornáveis problemas de gestão ao invasor -, a biblioteca real, uma casa de imprensa, uma colossal quantidade de objectos preciosos e todos os membros da família Reinante, impedindo assim, qualquer tipo de coacção sobre a legitimidade soberana.

É evidente que Laurentino desconhece tudo isto. Melhor seria se, em vez de escrever, estudasse. 

Miguel Castelo-Branco

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