sábado, 4 de abril de 2020

Quando lá chegaram os EUA, Portugal já tinha 300 anos de presença na Ásia

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As relações entre os EUA e a China estão na ordem do dia, pelo que não há semana em que não surjam nos escaparates obras que visem lançar luz sobre o confronto de duas potências em tudo distintas, condenadas à cooperação ou ao enfrentamento. Os EUA, ainda uma potência global, confiscaram, hegemonizando-as, as relações com a China, detidas até meados do século XX pelas potências europeias, pelo que se compreende que os norte-americanos procurem, não sem algum exagero, inflaccionar - inchando-as - a importância dos contactos de natureza comercial estabelecidos na primeira metade do século XIX.

Recurso a conceitos obsoletos, absoluta falta de informação de base sobre a antiguidade das relações entre os ocidentais e o Império do Meio, este When America first met China, de Eric J. Dolin, constitui oportunidade perdida para um melhor entendimento do primeiro estádio da presença norte-americana no Oriente. Desconhecendo a hierarquia que separa relações de contactos, Dolin marginaliza e minimiza a presença portuguesa, então já multissecular na Ásia, confundindo trocas comerciais com relações de Estado-a-Estado. Colocar o chá, as porcelanas e as sedas - trocadas pelas peles de focas americanas - ao mesmo nível que as embaixadas portuguesas a Cantão e Pequim, a acção do Padroado, os matemáticos e astrónomos jesuítas na corte do Império Celeste - onde nem faltou a assessoria política para o estabelecimento das condições para a assinatura do primeiro tratado formal entre a China e a Rússia, façanha que coube ao padre Tomás Pereira, homenageado por Artur Wardeganum no soberbo In the Light and Shadow of an Emperor: Tomás Pereira, SJ (1645–1708), the Kangxi Emperor and the Jesuit Mission in China - é por demais revelador do desequilíbrio e ausência do sentido das proporções.

Esquece - ah, como faz falta uma política sistemática de tradução dos nossos trabalhos historiográficos para a língua inglesa - que além do hard power militar e económico que Portugal detinha no Oriente, havia um soft power, um status que separava portugueses de outros europeus aos olhos dos asiáticos. Em finais do século XVIII e princípios do século XIX, Portugal era ainda, aos olhos dos asiáticos, uma potência desenvolvendo actividade em níveis diferentes, reunindo condições que o colocavam em vantagem sobre outros ocidentais. Dolin pouco diz sobre Macau, pois ali funcionou a partir de 1568 o primeiro hospital ocidental na China, responsável não apenas pela assistência, mas pela difusão das técnicas operatórias e de diagnóstico e até na introdução do quinino no Império do Meio. Esquece, igualmente, que a tipografia portuguesa trabalhava na Ásia desde o século XVI e que no início do século XIX, antes da criação de Singapura e Hong Kong, a única imprensa periódica editada no Extremo-Oriente era a macaense. Omite, desconhecendo-o, que o seminário superior de Macau era a única universidade no continente, que a sinologia foi, até inícios de Setecentos, portuguesa.

O interesse pela barganha, gente levando mercadorias e carregando mercadorias, lobos-do-mar, contratadores de coolies, empresários do ópio e simples aventureiros são coisa pouca, quase marginal, no cômputo do encontro de duas civilizações. Dolin dá prioridade ao business, pelo que o seu trabalho - exótico, colorido, escrito para entreter - não passa de um texto para se ler na praia.

MCB


Fonte: Nova Portugalidade

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