domingo, 7 de junho de 2015

Obreiros da Justiça e da paz


Uma questão provocadora e desafiante: Jesus Cristo é de esquerda ou de direita?

Muitos já o quiseram rotular de perigoso revolucionário, mas a verdade é que não mexeu uma palha contra a dominação romana do seu país, nem nunca deixou que os seus seguidores promovessem, em seu nome, uma mudança política. Também não se opôs a que Pedro pagasse o imposto a que ambos estavam obrigados, o que não condiz com o perfil que alguns lhe querem afivelar: o de um Che Guevara de há dois mil anos.

Também não faltam os que pretendem ver em Jesus de Nazaré o arquétipo da tradição mais ultramontana. Esquecem estes, porque assim lhes convém, os gestos proféticos do amigo de publicanos e pecadores, bem como as suas enérgicas diatribes contra os fariseus e os doutores da Lei, máximos representantes do poder religioso. É também crítica a atitude de Cristo em relação ao poder temporal, seja ele exercido por Herodes, a quem chamou raposa, ou por Pôncio Pilatos, a quem se apresentou como rei. O ímpeto com que expulsou, a golpes de azorrague, os vendilhões do templo, também não coincide com o figurino de pacato conservador que uma certa direita, ao arrepio da história sagrada, lhe quer colar.

O mesmo se diga dos santos. À imagem e semelhança do seu Mestre, foram também, politicamente falando, desconcertantes. A beata Teresa de Calcutá é um ícone da luta contra a pobreza mais miserável. Mas a fundadora das missionárias da caridade foi igualmente uma das pessoas que mais se bateu pelo direito à vida dos não-nascidos. Uma certa esquerda abomina esta faceta de Teresa de Calcutá, mas elogia o seu serviço aos mais pobres dos pobres; enquanto alguma direita louva a sua luta contra o aborto, mas sente algum incómodo em relação à sua corajosa denúncia da exploração humana e das causas sociais e políticas da miséria.

É neste entendimento que se deve procurar compreender a vida exemplar e a morte santa do novo beato da Igreja católica: o arcebispo salvadorenho D. Óscar Romero, que foi beatificado no passado dia 23 de Maio de 2015, em San Salvador. O novo mártir foi assassinado a 24 de Março de 1980, quando celebrava a Eucaristia, pouco depois de ter participado, na manhã desse mesmo dia, num encontro de oração promovido pelo Opus Dei, instituição católica que frequentava regularmente.

Dadas as circunstâncias dramáticas da sua morte, Romero foi visto por alguns como um representante de uma teologia da libertação marxista, enquanto outros, que sabiam da sua proximidade com o Opus Dei, julgaram-no defensor dos valores tradicionais com que alguns conotam esta instituição eclesial. Na realidade, nem uma coisa, nem a outra: a sua teologia da libertação não era mais do que a doutrina social que promana do Evangelho de Jesus Cristo e a sua cordial relação com o Opus Dei insere-se no normal relacionamento de um pastor – primeiro como padre e depois como bispo – com um organismo católico que, como tantas outras instituições eclesiais, se insere na pastoral diocesana. Assim o reconheceu, expressamente, o novo mártir centro-americano, numa dedicatória de uma sua fotografia: “Abençoo com carinho de pastor e amigo ao Opus Dei na nossa arquidiocese. Afectuosíssimo, Óscar Romero, arcebispo”. É verdade também que conheceu pessoalmente S. Josemaria Escrivá e que foi um dos primeiros bispos a solicitar a abertura do processo de canonização do fundador do Opus Dei, mas um terço do episcopado mundial fê-lo também, pelo que esse seu gesto nada tem de muito extraordinário.

Ao contrário do discurso político, que é sempre partidário e, portanto, de esquerda ou de direita, a doutrina da Igreja é universal, porque a todos convida à conversão. O bem-aventurado Óscar Romero pregava aos ricos e aos pobres a libertação do pecado pessoal e social, sem excluir ninguém. Três anos antes de ser assassinado, o então arcebispo de San Salvador tinha dito: “Há muitas injustiças agora e muitos atropelos à dignidade humana e há muitas injustiças contra os pobres e injustiças também dos pobres contra os ricos, há muitas situações de pecado (…) e é necessário que os cristãos trabalhem para transformar esta situação de pecado. O cristão não deve tolerar que o inimigo de Deus, o pecado, reine no mundo. O cristão tem que trabalhar para que o pecado seja irradiado e o reino de Deus se realize. Lutar por isto não é comunismo. Lutar por isto não é meter-se em política” (16-7-1977).

Alguns entenderam este forte compromisso com a justiça social como uma atitude política, quando o mártir Óscar Romero mais não fazia do que recordar princípios elementares da doutrina social da Igreja. Com essa mesma enviesada lógica, também os primeiros cristãos teriam sido comunistas, uma vez que, então, “todos os crentes viviam unidos e possuíam tudo em comum. Vendiam terras e outros bens e distribuíam o dinheiro por todos, de acordo com as necessidades de cada um” (Act 2, 44-45).

Jesus Cristo não é de esquerda nem de direita, porque o seu reino não é deste mundo. Ele é do alto e é desse reino que é também o beato Óscar Romero, entre muitos outros obreiros da justiça e da paz.

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