Crêem muitos, por força não da verdade mas do hábito, que a Monarquia é directamente associável ao absolutismo. Isto é, não é raro o português que imagina uma Monarquia de mão dada com o absolutismo, e, depois, com a tirania. A estes terá sido ensinado (se tal é ensino) que o monarca foi e sempre fora o detentor absoluto do poder, sem ninguém ou nada que o limitasse. A partir daí simples é chegar à ideia de que a forma como este exercia o poder seria tirânica.
Ora, não pretendemos aqui fazer uma apologia da Monarquia, seja ela de que tipo for, mas dar a conhecer a Mesa da Consciência e Ordens, um órgão sui generis que se notabilizou pelo seu carácter intrinsecamente anti-maquiavélico, numa altura em que o absolutismo, esse que muitos teimam em confundir com a própria Monarquia, surgia e ia tomando conta, de facto, do campo político-ideológico.
Surgiu este Tribunal em Dezembro de 1532, com o nome de Mesa da Consciência (passar-se-ia a chamar Mesa da Consciência e Ordens em 1551, quando, sendo as Ordens Militares de Cristo, Avis e Santiago incorporadas à Coroa, passou também este tribunal a exercer jurisdição sobre elas). E a razão da sua criação explica, talvez, todo o seu carácter, profundamente imbuído das filosofias que construíram a Europa, e, de uma forma especial, Portugal. D. João III nada mais nada menos queria que um tribunal que julgasse a sua própria consciência. Prudente, D. João III reconhecia a sua imperfeição e valorizava a sabedoria alheia, entregando a este Tribunal as decisões sobre os casos que tocavam à obrigação da sua consciência. Tratava, portanto, este Tribunal, não somente de Justiça mas também de Administração. Julgava problemas de consciência. Julgava, como o nome indica, a consciência: toscamente, aquilo que limita as nossas acções, que interfere nos nossos actos. Não sabendo o monarca que decisão tomar (se estaria prestes a decidir bem ou mal) entrega a este Tribunal a decisão. A Mesa da Consciência e Ordens julgava ética e moralmente, e as suas decisões tinham força de lei. Podemos dizer, então, mais atrevidamente e com mais conclusão, que este Tribunal limitava o poder do rei pela sua consciência.
Não deixa, de facto, de ser espantoso um rei admitir que um Tribunal viesse examinar judicialmente a sua consciência.
A sua constituição, de resto, contava com juristas (muitos deles saídos de Coimbra, com pelo menos 12 anos de estudo nessa faculdade), teólogos e prelados. Em certos casos poderia também ser chamado o Confessor Régio (isso mesmo, o confessor do rei). De qualquer maneira, os duros requisitos para a admissão garantiam que só os mais puros, de inteligência e fé, poderiam fazer parte da Mesa da Consciência e Ordens.
Entre os muitos casos que a Mesa da Consciência e Ordens foi chamada a decidir, encontrava-se um de especial interesse: saber se uma pessoa se poderia vender a si ou ao seu filho para escravidão (já que aquele que tinha escravos era obrigado a alimentá-los, conseguindo estes garantir que não morreriam à fome) em caso de grande necessidade. Haveria de ser decidido, após uma mui interessante disputatio que só em caso de “extrema” necessidade, não “grande” seria admissível tal conduta. Punham-se frente a frente neste caso, que coube à Mesa da Consciência e Ordens decidir, dois valores maiores: Vida e Liberdade. Só olhando para os casos sob a alçada deste Tribunal podemos realmente apurar a importância deste órgão. Tocava, a Mesa da Consciência e Ordens, em assuntos delicados, que exigiam mestria e mentes capazes, a quem o rei, conscientemente, delegava a tomada de decisões que nem o próprio se sentia capaz de tomar.
Enquanto o monarca, déspota esclarecido do surgente Estado Absoluto, era considerado o mais fiel interprete da razão, em Portugal, contra a corrente, surge e sobrevive aos tempos a Mesa da Consciência e Ordens, que sem pudor algum afirma o exacto contrário, como viva reminiscência medieval.
Travava-se uma luta pela Europa. Travava-se uma luta, diga-se, pelo cumprir dos pilares do Ocidente, a que atribuímos, e com razão, os nossos sucessos: Filosofia Grega, Direito Romano e Religião Cristã. A esta luta lançou-se a Mesa da Consciência, tribunal que tão claramente e sem ponta de impureza leva a ideologia ao mundo real. Neste caso, às instituições.
Afirma, e bem, o Doutor Rui de Figueiredo Marcos, actual Director da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, na sua única e magnífica obra “História da Administração Pública”, o seguinte, relativamente a este Tribunal: “D. João III colocara-se nos antípodas de um príncipe maquiavélico, já que admitia que o poder do rei fosse objecto de uma depuração ética realizada através de um controlo jurisdicional. Significava, fora de dúvida, que a voz da consciência suplantava a razão de Estado, ou, dito de outra forma, a razão de Estado refreava-se a golpes de consciência.”
Acerca da Mesa da Consciência e Ordens e do seu papel na colonização e vida das terras brasileiras dedica o Doutor Ibsen Noronha extensas e valiosas páginas no seu livro “Aspectos do Direito No Brasil Quinhentista – Consonâncias do Espiritual e do Temporal”, cuja leitura, para a compreensão de alguns dos desafios sociais e jurídicos que a colonização do Brasil trouxe a Portugal, é essencial. Desde a antropofagia à condição dos índios, Portugal soube encarar os desafios da colonização de uma forma exemplar, como a análise cuidada e impoluta do Doutor Ibsen Noronha nos mostra. Uma leitura essencial para aquele que ama, do fundo do seu coração, a Portugalidade.
Fica a ideia de uma uma instituição sobre a qual se esperam ainda mais extensos e meticulosos estudos do que aqueles que até agora nos foram, felicidade a nossa, oferecidos. Fica, com o curioso caso da Mesa da Consciência e Ordens, a ideia de uma Monarquia que não é absoluta. De uma Monarquia que lutou contra o absolutismo, para que não mais o português, ou outro, cometa o primário erro de confundir Monarquia e absolutismo. Monarquia e tirania. Um conhecimento sólido da nossa História só pode ser construído sobre sólidos pilares, e, estes pilares, sobre sólido terreno. A construção de uma adequada visão histórica, essencial ao povo, exige o afastar destes verdadeiros preconceitos. E a Nova Portugalidade, como sempre, não renuncia à competência que a si própria atribuiu, nem a aliena a quem não é capaz de servir a verdade, e aqui presta o seu serviço.
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