Os carpinteiros da ribeira
Joaquim Magalhães de Castro
No primeiro andar do vetusto mosteiro de São Bento, em toda a área do claustro, funciona a maior biblioteca da América Latina, “não em número de livros, mas de títulos’, como ressalva o monge beneditino Silvério, que tem a amabilidade de me conduzir numa visita guiada. Entramos no edifício propriamente dito, através do corredor onde estão as celas dos monges, com nomes de santos gravados na ombreira da porta. “Esta pertencia ao padre Estêvão, o nosso maior teólogo, homem muito capaz”, informa Silvério, apontado para uma das celas.
O frade abre depois a porta que dá acesso a uma varanda com vista sobre a Baía de Guanabara e a Ilha das Cobras. Outrora “uma das senzalas da nossa ordem”, a ilha foi aterrada e tem hoje um desenho quase rectangular. Uma das pontes liga-a à cidade e a outra, em forma de esquadro, à pequeníssima Ilha Fiscal. Há guindastes por todo o lado e um grande edifício do século XIX. Testemunho de outros tempos, uma pequeníssima mancha verde, “o Castelinho”. Era ali que andariam as cobras, o justificativo da designação da ilha. Duvido que sobreviva alguma, mas nunca se sabe.
Concentremo-nos antes no tal edifício do século XIX, pois aí ficaram temporiamente alojados, em 1814, várias dezenas de chineses originários de Macau, como o comprova um documento guardado numa das gavetas do Arquivo Histórico Ultramarino e intitulado “Relação nominal dos chinas que se acham aquartelados na Ilha das Cobras”.
Mas, afinal, quem eram esses chinas? Diz-nos o documento que totalizavam 68, um deles se chamava Assan e teriam ali chegado a bordo do navio Luconia. Alguns seriam “carpinteiros de machado” ou “carpinteiras da ribeira”, ou seja, construtores de barcos. A ideia do envio de carpinteiros navais chineses para o Brasil partiu de Ouvidor Manuel de Arriaga, visionário neste como noutros capítulos (o da introdução do chá é exemplo sobejado), que um ano antes informara quem de direito da chegada a Salvador da Baía a bordo do navio D. Maria (com destino a Mucuri, conhecido mais tarde como São José de Porto Alegre), da habitual remessa de plantas de chá, pois as sementes das anteriores tinham germinado com sucesso, e alguns carpinteiros destinados aos estaleiros locais, onde desde o século XVII se construíam naus, galeões e fragatas, admiráveis embarcações de alto-bordo prontas a enfrentar as mais alterosas vagas. No mesmo documento dá-se notícia ainda do envio para o Brasil de outros cento e quarenta trabalhadores, alguns deles operários navais distribuídos pelos navios Nossa Senhora da Luz e Maria Primeira, que ficariam alojados na Real Fazenda de Santa Cruz, antiga residência de jesuítas e refúgio de verão para a exilada família real, onde provavelmente foram também parar os que temporariamente habitaram a Ilha das Cobras.
Entre essa extensão de terra e o pontão de Mauá, num estaleiro naval, avisto dois submarinos e dois navios de guerra, entre várias outras embarcações. Com a ajuda da lente de 200 milímetros da minha máquina fotográfica posso ler-lhes os nomes pintados no casco: Tupi e Tamoio, S30 e S31, respectivamente. Estes são os nomes de duas das tribos com maior expressão no Brasil.
“Tudo aquilo era propriedade nossa que ao longo do tempo nos foi retirada pela Marinha”, queixa-se o frade, referindo-se a uma época em que tudo o que se escutava no mosteiro era o marejar das águas. Hoje, é preciso fechar todas as janelas e só a extrema grossura das paredes evita a entrada contínua dos ruídos do trânsito.
O aterro permitiu a construção de mais uns edifícios com telhados de zinco e de um viaduto movimentadíssimo. Ao longe, avista-se, quase junto à ponte de Niterói, uma ilhota, com um aspecto artificial, que reúne um conjunto de bonitos edifícios coloniais rodeados por árvores. “Igualmente pertence à Marinha brasileira”, informa o meu anfitrião.
Também os registos da Marinha, que o investigador Juvenal Greenhalgh tem vasculhado, revelam dados esclarecedores. No seu livro “O Arsenal da Marinha do Rio de Janeiro na História, 1776-1822”, o investigador dá-nos conta da “cópia das condições em que vieram os chinas que de Macau foram remetidos com destino para o serviço do Arsenal Real da Marinha”, encaminhado para o inspector do mesmo, José Maria de Almeida, por expressa ordem do Príncipe Regente.
Em Petrópolis, no Arquivo Histórico do Museu Imperial, dois documentos referem a presença de um indivíduo chinês nos escaleres do Arsenal Real da Marinha. Trata-se de um tal João António, que enviaria uma petição ao Príncipe Regente solicitando que – por motivos de saúde, e por o “capitão do distrito” o ter acusado de compadrio com os índios tinha-o remetido, como castigo, para os trabalhos no arsenal – lhe desse “baixa” e a possibilidade, “quando houver ocasião”, de regresso ao seu país natal. O atestado médico anexo ao documento data de 1809, sinal de que se tratava, de facto, de alguém ali empregado contra a sua vontade e não traduzia qualquer política de integração de trabalho braçal chinês na economia local.
Joaquim Magalhães de Castro
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