Um santo não é um cristão excepcional, mas um não-santo é um cristão fora do normal, porque a santidade é a normalidade da vida cristã.
O Papa Francisco, pela exortação apostólica Gaudete etexsultate, sobre a chamada à santidade no mundo actual, agora publicada, recorda que a perfeição da vida cristã é para todos. Quer isto dizer que a santidade cristã está em saldo?
Poucos foram os fiéis reconhecidos como santos pela Igreja, se comparados com a totalidade dos cristãos. A razão prende-se com a exigência do correspondente processo canónico que, não só requer a demonstração de que o candidato aos altares viveu heroicamente todas as virtudes cristãs, mas também a prova científica de um facto extraordinário atribuído à sua intercessão. Como, em geral, estes milagres são de natureza médica, é imprescindível que uma competente autoridade clínica, de preferência não confessional, declare que a cura obtida não teve, nem poderia ter, explicação natural, em cujo caso não serviria para o efeito.
É verdade que a prova do martírio é mais simples, porque basta demonstrar que a morte foi causada por ódio à religião, como foi a do Padre Jacques Hamel, barbaramente assassinado em pleno altar, a 26-7-2016, por terroristas islâmicos, em Saint-Etienne-du-Rouvray, França. Talvez também seja o caso do igualmente francês tenente-coronel da polícia, Arnaud Bellarme, que, apesar de ter sido maçonda Grande Loja de França (Jornal i, 26-03-2018), estava em processo de conversão ao Cristianismo e preparava-se para contrair matrimónio católico, com a mulher com quem já estava casado civilmente. Como S. Maximiliano Maria Kolbe, que foi morto a 14-8-1941 em Auschwitz e que a Igreja venera como mártir, também Bellarme deu heroicamente a sua vida pelo próximo.
São relativamente poucas as pessoas que são beatificadas ou canonizadas, mas convém não confundir a santidade cristã com esse reconhecimento formal. Ou seja: quando a Igreja católica a todos os fiéis convida à santidade – nomeadamente pela exortação apostólica Alegrai-vos e exultai, do Papa Francisco – não banaliza a santidade, porque a todos é pedida a perfeição da caridade no exercício do apostolado cristão. Que a excelência da sua virtude venha, ou não, a ser posteriormente reconhecida pela máxima autoridade eclesial é, na realidade, de somenos importância. Até porque a glorificação de um fiel serve, precisamente, para promover a santidade e não o próprio: não se chega a santo pela ‘vaidade’ de sê-lo, mas por amor a Deus e pelo serviço aos irmãos.
Mas, o que é a santidade? É frequente ouvir-se dizer: ‘Eu cá não sou santo nenhum!’ Dizem-no os que assim se desculpam dos seus defeitos mas, mais do que desculpa, essa afirmação, dita por um cristão, é uma confissão de culpa, porque todos os fiéis deveriam ser santos e, se o não são, é por sua única responsabilidade, pois a graça do baptismo e demais sacramentos é suficiente para o efeito. Um santo não é um cristão excepcional, mas um não-santo é um cristão fora do normal, porque a santidade é a normalidade da existência cristã. Os primeiros cristãos assim pensavam e diziam: tratavam-se por santos e, de facto, muitos deles vieram a ser mártires da fé.
Outro equívoco comum é o de supor que os santos o foram porque fizeram coisas que não são deste mundo. De um santo esperam-se aparições e visões, êxtases, grandes jejuns, penitências insofríveis, curas espantosas, vozes estranhas e levitações … E, quando nada disso constava na biografia de um bem-aventurado, não faltavam hagiógrafos menos escrupulosos que inventassem fenómenos rocambolescos. De São João de Deus, apesar de ter nascido normalmente numa família alentejana, disse-se depois que, quando foi dado à luz, resplandeceu um clarão incrível em Montemor-o-Novo, sua cidade natal, ao mesmo tempo que, misteriosamente, começaram a repicar os sinos da terra, anunciando o nascimento do santo …
Desde tempos imemoriais, a Igreja teve a preocupação de expurgar as hagiografias de tudo o que, por não ser verdadeiro, afasta os santos do comum dos mortais. De nada nos servem colecções de super-homens ou de ‘misses’ mundo da santidade se, afinal, nada têm a ver connosco. Precisamos, pelo contrário, do exemplo de gente comum que, apesar das suas imperfeições, alcançou o ideal da caridade cristã.
Assim eram, com efeito, aqueles primeiros santos que o próprio Cristo escolheu para seus discípulos. Homens e mulheres normais, que nunca deixaram de o ser. Eram pecadores – como Maria Madalena, Pedro e Paulo – mas maior foi a sua caridade, porque a santidade não radica tanto na ausência do pecado, como na grandeza do amor. Por isso, Jesus de Nazaré preferiu a mulher que amou muito, mesmo tendo sido pecadora, em detrimento do irrepreensível fariseu, que talvez nunca tivesse cometido nenhuma falta grave, mas que pouco amava (Lc 7, 36-50). A santidade cristã é isso: saber-se infinitamente amado por Deus e amar Deus e os outros com esse mesmo amor.
Este nosso mundo tem muita necessidade de santidade, precisamente porque tem uma enorme carência de amor. O aborto, a guerra, o divórcio, a eutanásia, etc., são os pecados do egoísmo e do desamor: não se superam só com melhores leis, mas sobretudo com mais caridade, ou seja, mais espírito cristão, mais santidade.
Todos os domingos e festas, a Igreja canta a Deus: “Só vós sois o Santo”. Só Deus é santo: as criaturas apenas participam da santidade divina e, por isso, não são adoradas, mas apenas veneradas. Também se honram os notáveis da pátria e se preza a memória dos familiares defuntos. A Igreja é um povo que louva os seus heróis e uma família que não esquece os seus melhores filhos.
De todas as criaturas santas, há uma só que mereceu o superlativo da santidade: a ‘santíssima’ virgem Maria, mãe de Jesus. E, contudo, não só nunca foi beatificada, nem canonizada, como também não se lhe conhece nenhum milagre, porque até o das bodas de Caná não foi feito por ela, embora por sua intercessão. Porque é, então, ‘santíssima’?! Porque, mesmo não tendo feito coisas extraordinárias, tudo fez extraordinariamente bem, ou seja, com muito amor a Deus e aos homens!
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