segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Os marfins africanos que vieram de Lisboa

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Os chamados activistas envolvidos na campanha de terrorismo cultural que reclama a devolução de objectos museológicos a África, amiúde pessoas sem qualquer formação histórica, agindo sempre ao arrepio de critérios científicos e dando a cada passo manifesta prova de profunda ignorância, afirmam peremptoriamente que as peças de arte africana existentes em museus portugueses, italianos, alemães, britânicos e até brasileiros foram obtidas mercê de extorsão.

Tivessem prática da leitura e acompanhassem os desenvolvimentos da investigação historiográfica portuguesa relativa a África e conter-se-iam em tais expansões de crassa incompetência, pois sabemos que parte apreciável dessas peças entravam no Reino por via do comércio da costa de África – objectos exóticos então muito cobiçados e vendidos na então Rua Nova dos Mercadores, na proximidade do Terreiro do Paço -, de páreas (tributos) pagas ao Rei de Portugal ou resultantes de trocas. Porém, o mais espantoso neste imbróglio é o facto de os senhores activistas desconhecerem de todo que parte apreciável desses objectos não veio de África, mas foi produzido em Lisboa por marfinistas negros que trabalhavam em exclusivo nas oficinas que serviam a Coroa.

Graças a Rafael Moreira e Alfredo Pinheiro Marques, foi possível acompanhar o percurso desses artistas ao serviço do Paço, nomeadamente a família dos Reinel (ou Reinéis) oriundos da Serra Leoa. As relações dos portugueses com os Jalogos (Wolof) da Serra Leoa foram as melhores desde o século XV, tão amigáveis que os navegadores portugueses ali chegados pensaram inicialmente tratar-se de súbditos do mítico Preste João. Os Jalofos eram exímios artesãos e as peças em marfim, madeira e pedra-sabão que executavam depressa foram cobiçadas como objectos de luxo destinados a adornar as mesas da elite portuguesa. Os artesãos mais hábeis foram convidados a vir para Lisboa, onde se estabeleceram em oficinas e desenvolveram uma arte afro-portuguesa – com propriedade sapé-portuguesa. Ao longo dos séculos XVI e XVII, alguns destes exímios mestres ascenderam ao estado de nobreza.

Um destes entalhadores do Paço, filho de Jorge, era Pedro, já nascido em Lisboa e com o apelido Reinel (isto é, nascido no Reino). Educado na escola palatina, recebeu educação cortesã e lições de cartografia, gramática, latim e matemática. Das mãos dos reinéis saíram dos mais belos mapas portugueses do século XVI, mas igualmente saleiros e outras peças em marfim que hoje se encontram nas colecções do Museu Nacional de Arte Antiga, mo Museu Grão Vasco, mas também no British Museum, no Staatliche Museum zu Berlin e no Staatliches Museum für Völkerkunde de Munique.

MCB

Para saber mais: Rafael Moreira - "Pedro e Jorge Reinel, dois cartógrafos negros na corte de D. Manuel de Portugal, in. Revista da Rede Brasileira de História da Geografia e da Geografia Histórica, 4/2015.

Fonte: Nova Portugalidade

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