Como é que o Estado e os serviços de saúde podem pretender desencorajar o suicídio de algumas pessoas quando, ao mesmo tempo, auxiliam o suicido de outras? Este duplo padrão é contraditório.
Ainda antes da tomada de posse dos deputados eleitos, já se anunciou a apresentação de um projeto de lei de legalização da eutanásia e do suicídio assistido, como se fosse essa a “prioridade das prioridades” da nova legislatura, o que, de modo algum, transpareceu da campanha eleitoral, em que os dois partidos mais votados nem sequer tomaram posição sobre o assunto.
Seja como for, a discussão que será reaberta não pode ignorar as lições dos países que já seguiram essa via, as que já de há muito são conhecidas e as que vão sendo conhecidas continuamente. Quem acompanhe a situação desses países regularmente poderá verificar como se sucedem notícias que invariavelmente confirmam os alertas de quem se opõe a essa legalização.
Merece destaque, a esse respeito, um estudo recentemente publicado pelo National Council of Disability, um organismo independente de âmbito federal norte-americano dedicado à proteção e promoção das pessoas com deficiência. Esse estudo afirma com veemência (e indicando exemplos concretos) os malefícios que a legalização do suicídio assistido provoca nessas pessoas, não só as que a ele recorrem, como todas elas em geral. Afirma, por isso, a oposição clara a tal legalização. Em face da multiplicação dos Estados federados que optaram por essa legalização (são hoje em número de dez, sendo que em muitos outros Estados propostas no mesmo sentido têm sido rejeitadas), esse estudo confirma e reforça as tomadas de posição desse organismo já assumidas anteriormente por duas vezes, em 1997 e em 2005. Nele se afirma também que essa legalização tem a oposição de todas as associações de defesa das pessoas com deficiência que, nos Estados Unidos, se pronunciaram sobre a questão.
De acordo com esse estudo, o maior dos malefícios que a legalização do suicídio assistido provoca nas pessoas com deficiência em geral, tem a ver com a mensagem cultural que essa legalização veicula e o que essa mensagem provoca no ambiente cultural da sociedade em geral e na mente de cada uma dessas pessoas, em especial as que sofrem de alguma deficiência que, de uma ou de outra forma (porque qualquer doente em fase terminal padecerá de algum tipo de deficiência), possam estar abrangidas por essa legalização. Esse efeito é o da desmoralização e do desencorajamento das pessoas com deficiência quando o Estado, a ordem jurídica e os serviços de saúde dão a entender (e é isso que decorre da legalização do auxílio ao suicídio) que as pessoas com certas doenças ou deficiências (e, por isso, dependentes dos cuidados de outrem)) estariam melhor se morressem («better off dead»), que a sua vida nessas condições deixa de ser digna, que a doença e a deficiência são incompatíveis com a qualidade de vida e que a morte provocada é resposta para os seus problemas. É de esperar que essas pessoas se sintam desmoralizadas, desencorajadas e, por outro lado, também como um peso para a família e para a sociedade em geral. E é de esperar que todo o clima social e cultural reflita isso mesmo.
Consequentemente, as pressões, mais ou menos diretas e mais ou menos conscientes, a que essas pessoas estão sujeitas vão no sentido da aceitação do suicídio assistido como uma forma de evitar a suposta indignidade da sua situação, e também o peso que representam para a família e para a sociedade. Há que salientar que o auxílio ao suicídio não tem os custos de muitos tratamentos úteis e justificados para a salvaguarda da vida e que, nos Estados Unidos, na sequência da legalização, muitos contratos de seguro passaram a incluir o suicídio assistido de modo preferencial em relação a esses tratamentos Por tudo isso, deve duvidar-se da autenticidade dos pedidos de auxílio ao suicídio formulados por essas pessoas.
Outro aspeto salientado por esse estudo diz respeito à repercussão da legalização do suicídio assistido na prática do suicídio em geral. No Estado de Oregon, o primeiro a legalizar o suicídio assistido, a taxa de suicídios em geral teve um incremento de 41% desde essa legalização até hoje. Calcula-se que esse incremento tenha sido de 6%, em média, nos Estados que mais recentemente optaram por essa legalização.
Há uma explicação lógica para que assim suceda. Desde há muito se fala no efeito contagiante da publicidade da prática do suicídio (o chamado efeito Werther, que evoca a influência do célebre romance de Goethe). É contraditório que se adote uma política de prevenção do suicídio para algumas pessoas e se adote uma política de auxílio ao suicídio para outras. Como é que o Estado e os serviços de saúde podem pretender desencorajar o suicídio de algumas pessoas quando, ao mesmo tempo, auxiliam o suicido de outras? Este duplo padrão é contraditório. O efeito de contágio do auxílio ao suicídio legalizado sobre a prática do suicídio em geral é, por isso, expectável.
Sendo certo que aquelas pessoas em relação às quais o Estado e os serviços de saúde optam pelo auxílio ao suicídio, e não a sua prevenção, são, precisamente, as mais vulneráveis, porque atingidas pela doença e pela deficiência. O que também contribui para agravar a situação destas.
O estudo em apreço salienta, ainda, as dificuldades, ou mesmo a prática impossibilidade, de controlo de erros e abusos de aplicação da lei, a começar pelos erros de diagnóstico a respeito da irreversibilidade da doença e de prognóstico do tempo de vida futura (que, de acordo com a legislação em vigor nos Estados em questão, normalmente condiciona a legalidade do auxílio ao suicídio). Tudo está, em grande medida e praticamente, nas mãos dos médicos que prestam auxílio ao suicídio e não é de esperar que sejam eles próprios a denunciar os seus próprios erros e abusos.
Não é demais relembrar a deputados que se preparam para debater de novo a legalização da eutanásia e do suicídio assistido: está em jogo um alicerce estruturante da civilização e da ordem jurídica; quando se derruba esse alicerce o edifício acabará por cair. Se se admite que a vida de pessoas com deficiência perde dignidade, que elas estariam melhor se morressem («better off dead»), que a morte provocada pode ser resposta para os seus problemas, é certo que assim se comprometem todos os esforços no sentido da sua defesa, inclusão e promoção.
Pedro Vaz Patto
Fonte: Observador
DEUS - PÁTRIA - REI
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