segunda-feira, 23 de março de 2020

Pestes de outros tempos



Durante muitos séculos, antes do surgimento da medicina moderna e da descoberta dos micro-organismos patogénicos, a designação de peste recobria uma ampla gama de doenças contagiosas, pelo que surtos de tifóide, cólera, varíola, malária e sarampo, para além da propriamente chamada peste bubónica, eram designadas por pestilências.

Para mitigar os seus efeitos, recomendava-se a abstenção de prazeres sexuais, a moderação no comer e no beber; a diminuição de banhos por forma a evitar resfriados, a fuga a ajuntamentos e o contacto com pessoas, o uso e abuso de água com vinagre para lavar as mãos e o interior das casas, assim como a exigência da permanência dentro da habitação. Para além de mezinhas, orações a santos tutelares e o consumo de alimentos frescos, simples paliativos, a robustez, a idade e resiliência dos doentes constituíam a caução para a sobrevivência dos enfermos.

O Ocidente europeu conheceu grandes surtos epidémicos na fase final do Império romano, mas durante a Idade Média, dada a pulverização das grandes cidades, a dispersão demográfica e o carácter rural da sociedade, tais doenças não marcaram de forma impressiva a vida das populações. Contudo, a partir do século XII, com o crescimento das cidades vocacionadas para o comércio a longa distância e acumulação em condições sanitárias precárias de grandes ajuntamentos, as pestes irromperram com uma virulência inesperada. Em finais do século XII, um primeiro surto abateu-se sobre o território português, causando grande mortandade, seguida por outra em inícios do século XIV. Contudo, foi a a Peste Negra - peste bubónica - que maiores estragos causou. Chegou a Portugal em 1348 e ao dissipar-se um ano depois, matara entre 30 a 50% da população. Novos surtos passaram a assediar com mortal regularidade o Reino (1384, 1415, 1434, 1438 e 1464, 1485 e 1492), exigindo das autoridades grande esforço e o lançamento de uma rede de hospitais, enfermarias e até legislação que exigia a limpeza das ruas, quarentenas e até dos primeiros esgotos. O início do século XVI conheceu a pestilência de 1503-1506 que obrigou à evacuação de Lisboa e à determinação real de impedir cemitérios dentro de portas.

O império ultramarino acentuou a exposição de Lisboa a surtos pestilenciais oriundos do Norte de África, mas também entradas por via do comércio com o Mediterrânico. No século XVIII, a febre-amarela, de proveniência brasileira, causou grande sobressalto, repetindo-se com infalível sazonabilidade até meados do século XIX. O último grande surto epidémico do século XIX - de facto, de cólera - dizimou dezenas de milhares de vidas, sendo que as mais destacadas vítimas mortais foram o Rei D. Pedro V e a sua jovem rainha D.ª Estefânia. Finalmente, há precisamente um século, a chamada Gripe Espanhola cobrou a vida a cerca de 100.000 portugueses, deixando um caudal de sofrimento que excedeu largamente os estragos demográficos causados pela participação portuguesa na Grande Guerra de 1914-18.

Desabituados de tais convulsões, quantas vezes excessiva e orgulhosamente arrogantes, esquecemo-nos que as pestes nos haviam visitado vezes sem conta. Hoje, o Covid-19, assalta-nos, interrompe a falsa segurança, declara-nos guerra. Uma vez mais há que dar luta a um inimigo insidioso. Vencê-lo-emos.

LFF


Fonte: Nova Portugalidade

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