O túmulo de D. Duarte e de sua esposa, D. Leonor de Aragão, nas Capelas Imperfeitas, no Mosteiro da Batalha |
Veemente atacado por Oliveira Martins e Júlio Dantas, que matizaram uma imagem de um Rei tíbio, fraco, e de grande incapacidade governativa, exagerando os traços com que Zurara e Rui de Pina o pintaram, aparece o Rei D. Duarte reconstruído na magistral biografia que lhe dedicou Luís Miguel Duarte - D. Duarte - Requiem Por Um Rei Triste (2005).
Filho de D. João I e de D. Filipa de Lencastre, nasceu em 1391 em Viseu. Aos vinte anos foi “associado” ao trono, ou seja, não sendo regente, passou a administrar toda a parte burocrática da governação sempre com parecer do pai. Mostrou-se capaz de desempenhar esta tarefa que lhe consumiu todo o seu tempo e saúde durante vinte e dois anos. Graças a estas funções a que se dedicou com afinco entrou numa terrível depressão da qual felizmente soube sair triunfador. Armado cavaleiro em Ceuta com vinte e quatro anos, casou-se em 1428 em Coimbra com Leonor de Aragão, sendo aclamado Rei, por morte de seu pai, cinco anos depois. Reinou apenas cinco anos.
Apesar de devoto, respeitoso dos mandamentos da Igreja, preocupado em conformar a sua vida com a moral evangélica, mostrou-se pouco permissivo e pouco generoso em relação aos privilégios eclesiásticos e às liberdades da Igreja. Sem dúvida dos monarcas da nossa monarquia, o mais culto no que respeita às Letras, mostrando-se um grande estudioso do Direito e da Filosofia do seu tempo. Legou-nos o Leal Conselheiro, o Livro da Ensinança de bem Cavalgar Toda a Sela - o primeiro tratado de equitação europeu - e o Livro da Cartuxa, ou de Apontamentos - obras cujo conteúdo iremos explanar em próximas publicações.
Infelizmente o seu reinado que tinha tudo para ser longo e próspero, teve um triste fim. Pressionado pelos irmãos Henrique e Fernando, por um lado, e por outro, com forte sentido de responsabilidade em respeitar o que D. João I desejava - continuar a guerra em África -, autoriza uma expedição a Tânger, que devido a uma série de imprudências, saiu malograda. D. Duarte assumiu as responsabilidades. Ficou refém o seu irmão Fernando, e foi pedido como resgate a praça de Ceuta. Ninguém estava disposto a entregar Ceuta, ou quase ninguém, nem mesmo D. Duarte. Devia-se, isso sim, tentar ao máximo outras formas de resgatar D. Fernando. Esta situação torturou-o de duvidas, não por ser fraco, mas por ser inteligente, lúcido e reflectido. Jamais as suas duvidas, ou a sua hesitação, podem ser confundidas com debilidade ou fraqueza de espírito.
Mês e meio antes de fazer quarenta e sete anos, em Tomar, foi assolado pela peste que desgraçava o Reino, e passados doze dias de enfermidade entregou a alma ao Criador. Sucedeu-lhe o seu filho Afonso, D. Afonso V, o mais velho dos seus nove filhos, dos quais três morreram logo na primeira infância. Deixou no testamento que ditou à hora da morte, atormentado de sentimento de culpa, que se deveria entregar a praça de Ceuta, se esta fosse o único recurso para que o seu irmão pudesse retornar com vida à sua pátria. Deixou também no mesmo testamento que quem deveria assumir a regência era a sua esposa D. Leonor, durante a menoridade de D. Afonso. Nenhuma destas vontades foi cumprida, e Portugal quase entrou numa guerra civil.
Político eloquente, como o seu cognome indica, é um Rei esquecido, e por vezes, tristemente mal lembrado. Soube ultrapassar as dificuldades que a vida lhe apresentou, e continuar a obra iniciada pelo pai, promovendo com elegância a memória da fundação da Dinastia de Avis. Os seus escritos e sua acção revelam uma elevada capacidade introspectiva, o que fez com que Eduardo Lourenço concluísse: “um espírito capaz de se olhar sem complacência até ao mais profundo de si”.
Muito se poderia continuar a dizer em torno deste nosso soberano. Ficamos com os versos certeiros, profundos, e sublimes, em que Pessoa eternizou, como se o próprio D. Duarte os proferisse:
“Meu dever fez-me, como Deus ao Mundo.
A regra de ser Rei almou meu ser,
Em dia e letra escrupuloso e fundo.
Firme em minha tristeza, tal vivi.
Cumpri contra o Destino o meu dever.
Inutilmente? Não, porque o cumpri.”
Tomás Pinto Bravo
Fonte: Nova Portugalidade
DEUS - PÁTRIA - REI
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