Alexandre de Serpa Pinto em 1884, depois de uma cerimónia na Sociedade de Geografia de Lisboa |
O relato da travessia de África de Serpa Pinto (1877-1879), é de conteúdo extasiante, revelador da sociedade profundamente violenta, racial e etnicamente hierarquizada, profundamente escravocrata, e onde o tribalismo não era um paraíso fechado, mas sim uma floresta de crimes hediondos e perseguições terríveis. Quando as primeiras colunas de homens entraram na África por desbravar, já muitos anos tinham passado da abolição legal do tráfico negreiro. Os ditos objectivos coloniais já eram outros, e “civilização” não era chicote. Lembramos por isso hoje as palavras do mais popular e carismático explorador português da centúria de oitocentos.
“A causa [do ataque ofensivo inesperado] estava na minha missão e na guerra que, em nome do meu Portugal, eu fazia, sem tréguas, ao comércio da escravatura. Alguns exploradores africanos, e sobre todos o commander Cameron e David Livingstone, têm apontado muitos factos horríveis e verdadeiros do comércio da escravatura, feito no interior de África por sertanejos portugueses. Por muitas vezes, a opinião pública em Portugal tem levantado a sua voz potente contra as asserções vilipendiosas dos acusadores estrangeiros, querendo negar factos que eles asseveram e em que ela não acredita, porque, na sua índole bondosa, é incapaz de os compreender e de os admitir.
Infelizmente, eles são verdadeiros e, mais ou menos romantizados, não deixam de conter um germe de realidade. Mas serão esses factos uma nódoa para Portugal? Não são. Afirmo-o e sustento-o.
Os sertanejos portugueses que mais se aventuram no interior do continente africano, quando o fazem, deixaram de ser portugueses.
São condenados, fugidos dos presídios da costa, são homens a quem a sociedade suprimiu as garantias do cidadão, são réprobos a quem a sentença infamante da justiça imprimiu um indelével ferrete de ignomínia; são os salteadores e assassinos, a quem a pátria baniu do seu seio com horror, que puderam quebrar o grilhão de ferro com que estavam acorrentados ao patíbulo aviltante e, fugindo a um mundo onde só os espera o desprezo da gente civilizada, vão ao longe buscar entre selvagens a guarida que perderam e continuar ali a sua vida de crimes.
Tais homens não desonram a sua pátria porque não têm pátria.
Querer tornar Portugal solidário dos crimes dos sertanejos africanos é querer tornar a França responsável dos actos da Comuna, a América do assassínio de Lincoln, a Itália dos salteadores dos Abruzos.
Há réprobos em toda a parte, e não podem ser nódoas nos povos que os esmagam não sua justa indignação.
Dos sertanejos europeus que têm estado estabelecidos no Bié, de dois apenas tenho notícia que não pertencessem a tal ordem de gente. São eles Silva Porto e Guilherme José Gonçalves; mas estes foram sempre queridos e estimados do indígena e do Europeu, gozaram sempre da consideração que a sua honradez e probidade lhes granjearam, foram cidadãos prestantes, que, com um tráfico legal e digno, nem chegaram a fazer fortuna, e foram muitas vezes vítimas dos outros.
O nome da Silva Porto é respeitado pelo gentio e conhecido numa grande parte da África central pela corrupção da palavra “Proto” e mais de uma vez me servi dele para desfazer obstáculos.
Em Caçange, como em Tete, outras duas portas da África central, há portugueses dignos e nobres que têm feito um grande serviço à Humanidade no comércio lícito com o interior, esse comércio que é o mais seguro mensageiro da civilização na terra dos negros.
Não confundamos, pois; não confundamos, e será pouco nobre ir buscar a autoridade do explorador para lançar, apontando factos verdadeiros, mas nada de producentes, um labéu sobre um povo nobre, o primeiro que deu mão forte à Inglaterra contra o tráfico infame; sobre um povo que sacrificou os seus interesses africanos legislando a abolição da escravatura; contra um povo, o mais livre do mundo, que estendeu a sua liberdade até à África, mandando para lá as leis que o regem na metrópole; chegando ao excesso de abolir ali a pena de morte e de lhes mandar um código que, por libérrimo, é impossível entre gente mais que semibárbara.”
In Como Eu Atravessei a África, 1881
Fonte: Nova Portugalidade
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