É a Catalunha nação? O autor crê que sim, e, tudo o sugere, fá-lo também maioria gorda dos catalães. A Constituição da Espanha, de resto, o mesmo afirma. Deve a Catalunha ser Estado independente? Isso não sabe o autor, que entende que desses assuntos só os povos, sem infiltração que lhes seja estranha, podem ajuizar e decidir. No que à família espanhola pertence, é feio e de má vizinhança que vá português pôr a mão ou enfiar argumento. Tal como desagradaria a Lisboa ou ao patriota de Portugal que a Espanha se exprimisse se, de futuro, parte do nosso Estado desejasse autonomizar-se, é natural - e, logo, coisa de evitar - que o espanhol se sinta incomodado com as paixões catalanistas de quem vê a crise deste lado da raia. Pela mesma razão pode, e deve, o catalão que quer o corte com Madrid irritar-se quando o português aficionado da Espanha lhe diz que a legalidade constitucional se sobrepõe aos direitos dos povos e que, por isso, os independentistas mais não devem fazer que enterrar fundo o desejo de separação. Silêncio, paciência, prudência; eis o caminho que interessa a Portugal até que a confusão ibérica amaine e se perceba se a Espanha se manterá unida ou se, como aconteceu na península até Isabel e Fernando, voltará a haver nela três grandes países.
Se a separação da Catalunha é questão de catalães e restantes espanhóis, o que convém a Portugal na crise catalã é compreender o que é do seu interesse. Não que, como se dizia, Portugal possa agir em função dele; a Espanha é Estado soberano e a intervenção, como ao vizinho de família que viva momento difícil, encontra-se-nos vedada. Mas convém estudar se, como é argumento de tantos inimigos da unidade espanhola, Portugal teria vida facilitada numa península dividida ou fraccionada. Diz-se frequentemente que sim e mostra-se, como prova para a tese, que foram tensas durante muitos séculos as relações entre Lisboa e Madrid; atribuem-se á Espanha intenções sinistras e o desejo de unificar a península à força. A resistência a Castela fez-se, particularmente após a Restauração de 1640, parte importante da mitologia nacional portuguesa. Recorda-se Godoy, Fontainebleau e o plano franco-espanhol para a destruição e partição da nação portuguesa; fala-se de Afonso XIII, que no século XX terá querido invadir Portugal após a revolução republicana de 1910; treme-se de indignação com Franco, que com a tese "Como invadir Portugal?" se fez general; recorda-se Alcântara, a sorte do Prior do Crato, que a mitologia nacionalista canonizou, e a conquista do trono português por Filipe II de Espanha, depois I de Portugal. Também o nacionalismo espanhol acusa, injustamente, Portugal de haver traído a unidade peninsular e católica para abraçar a Inglaterra protestante. Uma leitura mais racional da relação luso-espanhola, menos dada a excitações e mais amiga da realidade histórica e compreensiva da posição de ambos os países permite relativizar as faltas que ambos atribuem ao outro.
A relação luso-espanhola pode ou não ser de hostilidade - e é do interesse de ambos, Portugal e Espanha, que o não seja. A máxima grandeza peninsular - o Siglo de Oro espanhol, que coincidiu com o auge imperial de Portugal - não se fez do antagonismo entre as coroas de Castela e de Portugal, mas de colaboração franca e estreita entre as duas. Não é verdade que Portugal participou, em defesa da Espanha sua aliada e da Europa católica, nas campanhas marítimas que Castela conduziu no Mediterrâneo contra a ameaça islamo-turca? Não dividiram os dois o mundo entre si, primeiro com Alcáçovas-Toledo e depois em Tordesilhas e Saragoça? Não combateram irmanados a competição francesa, Portugal no Brasil e a Espanha na Europa? E não coube a Portugal a protecção das rotas atlânticas que, usadas pelos galeões vindos do México e do Rio da Prata, engordaram os cofres da Espanha e permitiram pagar a defesa da Europa contra o avanço coligado do Sultão otomano e do protestantismo luterano e calvinista? Trabalhando juntos Portugal e Espanha, tomaram a Europa e o mundo para si; dividindo-se - e dividiram-se traumaticamente em 1640 porque, para prejuízo dos dois, se haviam unido em 1580 - caíram os dois em imparável espiral de decadência. A lição é dupla: que a Espanha europeia e o Portugal marítimo não podem, para bem dos dois, confundir os seus interesses (e isso fizeram entre 1580 e 1640) e que, também para bem dos dois, devem ser parceiros.
Em medida que não pode ser ignorada, a expansão mundial de Portugal no século XVI - que exigiu, como sabemos, a completa mobilização de todos os recursos humanos, militares, diplomáticos, económicos e científicos ao dispor da nação portuguesa - só foi possível porque houve tranquilização da vida peninsular através da unificação entre Aragão e Castela. A existência a oriente de um aliado capaz de guarnecer as fronteiras terrestres de Portugal e de impedir a entrada na Ibéria de actores externos - a França, especialmente - foi o dado novo que possibilitou investir na construção do império meios que teriam, de outro meio, sido necessários à salvaguarda da metrópole europeia de Portugal. Sem dúvida, a expansão para o Atlântico e Marrocos iniciou-se antes da união entre Castela e Aragão, e isso não se pretende ocultar; o que se diz é que semelhante largueza de meios não poderia ter sido devotada à conquista e povoamento da Índia e do Brasil sem a amizade luso-espanhola que durou de Toro, em 1476, até 1580.
A lição do século XVI, o mais feliz e luminoso da História de Portugal, deve ser escutada pelos portugueses que desejem ver no nosso tempo uma nova política nacional de reencontro com a Portugalidade. Como nas centúrias de Quatrocentos e Quinhentos, uma deriva marítima e extra-europeia por Portugal requereria todos os parcos meios que Lisboa tem ao seu dispor. Se, como necessariamente aconteceria após uma independência catalã, a Ibéria do futuro for de conflitos latentes, ódios vários e alianças e contra-alianças entre Portugal e os países que venham a suceder à Espanha, Lisboa ver-se-á forçada a dar à defesa do rectângulo peninsular atenção que não atribui desde que, em verdadeiro golpe de génio, o governo português de então fez o Pacto Ibérico de 1939 e reconstruiu, após tantos anos de oposição entre Portugal e a Espanha, a situação que vingou no século de ouro - o XVI - de ambos os países.
RPB
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