sábado, 7 de outubro de 2017

O TRATADO DE ZAMORA - A FORMAÇÃO DO ESTADO PORTUGUÊS (*)


Quais os antecedentes do nascimento do Reino de Portugal?

Como recompensa pelos serviços prestados na reconquista cristã por D. Henrique de Borgonha (1), sobrinho da Rainha D. Constança, D. Afonso VI deu-lhe a mão de D. Teresa em casamento e, pelas núpcias, concedeu a ambos (2), entre outras honras, o condado de Portucale e Coimbra, por direito hereditário (3).

Os direitos transmitidos pela concessão eram amplos: conceder forais, fazer doações, dar cartas de couto dispondo dos direitos reais, confirmar actos, proferir sentenças, outorgar préstamos e convocar os senhores do Condado para auxiliar ou aconselhar os condes na sua cúria mas sobretudo vir, com as suas hostes, prestar o serviço militar.

Os condes exerciam poderes que, na origem, eram delegados pelo rei de Leão mas com o tempo vão reivindicá-los como próprios, uma vez que eram hereditários, passando por morte a seus filhos e netos, sem qualquer necessidade de confirmação ou renovação por parte do suserano – o rei de Leão.

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Quando os territórios concedidos pertenciam a membros da família real, podiam ser governados por um rei - rex. Foi com este sentimento que D. Teresa, a partir de 1117, assumiu o título de rainha – regina – reivindicando assim os direitos que lhe cabiam por ser filha de Afonso VI, entre os quais, o de governar como soberana uma parte dos territórios herdados (4).

E por isso D. Afonso Henriques se chamou infante, isto é, filho de Rei ou Rainha, com direito a ser Rei e também, por isso, no domingo de Pentecostes de 1125, ele se armou a si próprio cavaleiro na catedral de Zamora, o que era privilégio real «sicut moris est regibus facere» (como costumam fazer os reis), como é referido na Chronica Gothorum.

O Conde D. Henrique de Borgonha morre prematuramente em Astorga, provavelmente a 14-IV-1112 - outros autores dizem em 1-XI-1112 (5) - e a Rainha D. Teresa passa a governar o condado durante a menoridade de seu filho D. Afonso Henriques, continuando uma clara política de autonomia iniciada por seu marido para se libertar dos deveres de vassalagem a Leão e prosseguindo, para sul, as conquistas aos mouros.

Já viúva, manteve uma ligação sentimental com Fernão Peres de Trava (6) o qual, a partir de 1121, passa a desempenhar importantes funções em Portugal fixando-se, por necessidades militares de impedir as incursões almorávidas, junto da zona de fronteira do Mondego, e tomando conta dos castelos mais avançados de Seia, Soure e Santa Eulália de Montemor-o-Velho. Era filho segundo de Pedro Froilaz, Conde de Trava e de Trastámara, aio do Imperador Afonso VII e praticamente senhor de toda a Galiza e de D. Urraca Froilaz (7).

A velha nobreza de entre Douro e Minho passou a hostilizar D. Teresa por pensar, atenta a mentalidade feudal da maioria dos barões, que ela usurpava os direitos do jovem Príncipe e temer que, pela sua união com Fernão Peres, um«estrangeiro», essa usurpação fosse definitiva e não por a rainha defender mal os interesses de Portugal. Por essas razões estavam prontos a intervir para salvaguardar os direitos do seu senhor, o infante D. Afonso Henriques, apesar de, para uma minoria, D. Teresa ter toda a legitimidade, uma vez que havia sido por seu intermédio que o Conde D. Henrique recebera, das mãos do Rei de Leão, o Condado Portucalense.

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Entre 1120 e 1127 mãe e filho foram colaborando e os documentos de D. Teresa são geralmente confirmados por D. Afonso Henriques, que assina antes de Fernão Peres - como sucede no foral de Ponte de Lima.

A partir deste período acentuam-se as divergências entre mãe e filho (8) que os levou a dividir o Condado Portucalense pelo Douro: ao norte com a capital em Guimarães, imperava D. Afonso Henriques; ao sul a Rainha D. Teresa e Fernão Peres estabeleceram a sua Corte em Coimbra. Ressurgiam assim os antigos condados de Portucale e de Coimbra, que estavam unidos há mais de um século, e como D. Afonso Henriques aparecia à frente do de Portucale, Afonso VII de Leão exigiu do novo Conde (9) acto de vassalagem, devido pelo direito feudal, o que o nosso infante se demorou a fazer pelo que aquele veio, à frente das suas hostes, exigi-lo a Guimarães.

Regularizada esta situação, D. Afonso Henriques quis recuperar o “condado de Coimbra”, satisfazendo assim os anseios dos barões que, por lhe serem dedicados e o reconhecerem como legítimo herdeiro, iam sendo afastados por D. Teresa e não porque o monarca estivesse contra os fidalgos galegos pois ele não só nunca manifestou qualquer aversão àqueles - apenas a seu padrasto Fernão Peres - como cobriu de mercês os que o serviram fielmente.

E D. Teresa, apesar de ter algumas terras galegas em seu benefício, como as tenências de Astorga, Zamora, Orense, Límia, etc., nunca revelou o desejo de unificação Galiza-Portugal - o que, aliás, equivaleria à sua submissão ao seu sobrinho Afonso Raimundes, rei da Galiza - pese embora soubesse que com divisão do condado acordada com seu filho - nos termos da qual lhe ficaram a pertencer as terras a sul – perdia o contacto com a Galiza e a possibilidade de um eventual auxílio das tropas galegas.

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Salvo uma oposição de projectos políticos quanto às vias para a independência e por força do complexo xadrez político medieval que exigia alianças efémeras entre uns e outros – a rainha D. Urraca, o arcebispo de Santiago de Compostela Diego Gelmirez, o Conde Pedro Froilaz, o arcebispo de Braga Paio Mendes da Maia – D. Teresa e seu filho nunca se encontraram em conflito pessoal. Com a batalha de S. Mamede, travada a 24 de Junho de 1128 entre as tropas de D. Afonso Henriques e os partidários de D. Teresa, assiste-se ao golpe final no partido da Rainha, e não numa pretensa hegemonia galega, como pensam alguns historiógrafos, imbuídos de um exacerbado espírito nacionalista.

Após a Batalha de S. Mamede, o governo do Condado Portucalense passa para as mãos do Infante D. Afonso.

E é a partir desta altura que Frei António Brandão (10), fixa o início deste novo reino.

Refira-se que D. Afonso Henriques reclama o governo do território português pelas armas, não pedindo a Afonso VII que destituísse D. Teresa e o investisse a ele. Reclama Portugal como coisa sua, por direito de herança e Afonso VII não refuta esse direito de D. Afonso Henriques, pois apenas pretende o reconhecimento de uma mera suserania e não da sua soberania.

Sobre o estatuto de Portugal face a Leão, Carl Erdmann (11) refere: «Em que relação jurídica se encontrava então Portugal com o reino vizinho castelhano-Ieonês, mal se pode definir. Certo é apenas que existia qualquer forma de dependência, sem que no entanto D. Afonso VII de Castela, “Imperador da Espanha”, se atrevesse a denominar-se expressamente Senhor de Portugal.»

O novo Infante D. Afonso presta particular atenção aos territórios localizados a norte do Condado, que não raras vezes eram “invadidos” quer por Galegos quer por Leoneses, atacando sempre que tal se proporcionasse, para além de tentar manter as posições a sul do território do condado, de forma a conter eventuais investidas da mourama.

De 1128 a 1137 D. Afonso Henriques esteve em quase permanente rebelião contra o primo Afonso VII. Em 1130 O jovem príncipe invade a Galiza numa tentativa de expandir o território além Minho e reivindica a posse de Tui e outras localidades, que pelo Tratado de 1121, pertenciam a D. Teresa. No entanto, não logrou atingir o seu objectivo, pois Afonso VII de Leão intervém rapidamente, retirando-se o infante para os territórios do condado.

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No período de 1135 e 1136, D. Afonso Henriques concede forais, doa terras e cuida da administração do território, sem descurar a preparação militar, refazendo as suas hostes no sentido de retomar a sua política de expansão do território a norte do condado, para o que aproveita a subida ao trono do novo rei de Aragão e Navarra, Garcia, que se recusou a prestar vassalagem a Afonso VII, com quem celebra uma aliança (luso-aragonesa), e que leva a que D. Afonso de Portugal, invada de novo a Galiza e conquiste Tui, vencendo os leoneses em Cerneja. No entanto os muçulmanos atacam Leiria e D. Afonso quer resolver a situação rapidamente mas nesta altura, Afonso VII não esquecendo a ocupação de Tui e de outros territórios, ataca a fronteira Norte do Condado, levando a que Afonso Henriques assine a Paz de Tui, em 4 de Julho de 1137, comprometendo-se a guardar obediência ao Imperador, situação que lhe permitia salvaguardar e manter intactas as fronteiras do Condado, embora adiando uma vez mais os propósitos autonomistas de Portucale. 

Esta paz com Leão permite a D. Afonso Henriques ocupar-se de novo dos territórios mais a sul, cujo objectivo era a expansão do Condado, para o que, a 25 de Julho de 1139, invadindo terras Mouras das regiões transtaganas trava em Ourique uma decisiva e histórica batalha.

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Independentemente do local onde efectivamente as duas forças se confrontaram e se existiu ou não um confronto entre dois verdadeiros exércitos ou se apenas se tratou de um “fossado” ou de um ataque surpresa, poder-se-á considerar que esta batalha foi o efectivo ponto de partida para a consolidação do novo reino e a tradição afirma que o triunfo fora anunciado na véspera da batalha a D. Afonso Henriques por Jesus Cristo que lhe apareceu rodeado de anjos, garantindo-lhe a vitória em combate, no dia consagrado a Santiago.

A projecção política da vitória obtida na batalha por D. Afonso Henriques traduziu-se numa efectiva realeza do Infante D. Afonso e num ininterrupto desejo de assinalar uma verdadeira autonomia face a Leão, à qual Afonso VII já não se conseguiria opor, e que termina em 1143 no encontro de Zamora.

Também nas “Pequenas Crónicas de Santa Cruz de Coimbra”, se refere que D. Afonso Henriques foi aclamado rei em Ourique, em pleno campo de batalha, pelos seus companheiros de armas, passando a partir desta data a usar o título de rei, tendo a sua chancelaria, a partir de 1140, começado a expedir documentos com o título de portugalensium rex (Rei dos Portucalenses ou Rei dos Portugueses).

Moralizado pela vitória obtida em Ourique, Afonso Henriques invade a Galiza, violando assim o acordo de paz anteriormente celebrado em Tui com Afonso VII de Leão, o que leva a que em resposta, este entrasse em terras portuguesas, arrasando castelos à sua passagem.

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Para evitar uma batalha que se podia traduzir num elevado números de mortos, foram escolhidos os melhores cavaleiros de D. Afonso Henriques e os melhores cavaleiros de Afonso VII que se enfrentaram num torneio ou justa, que ficou conhecido como Torneio de Valdevez ou Recontro de Valdevez. Ganharam os representantes de D. Afonso Henriques, e os derrotados apelam à intervenção do arcebispo de Braga, no sentido de se estabelecerem as pazes entre as partes, o que veio a acontecer em Setembro de 1141. O Recontro de Valdevez foi um acontecimento decisivo e, muito provavelmente, a última etapa para o nascimento de Portugal como reino independente, antecedendo a celebração do Tratado de Zamora.

Como era o Território do Condado à data do Tratado de Zamora?
8.pngTal como sucede hoje, a fronteira norte era constituída pelo Rio Minho, desde a foz até Melgaço, seguindo depois a direcção norte-sudoeste até Lindoso, em muito semelhante à actual. Rodeava depois Chaves e ia para nordeste, para a região onde, mais tarde viria a edificar-se Bragança. Dali a fronteira seguia para região onde o Douro entra em Portugal.

Na região de Entre-Douro e Minho situavam-se os grandes centros do Condado: o religioso, em Braga; o político, em Guimarães; o marítimo, em Portucale.

Entre o Douro e o Mondego destacavam-se Coimbra - que, em 1143, constituía o limite sul do novo Reino -, Viseu e Lamego.

O limite oriental da Beira ficava entre os rios Douro e Águeda, tendo como fortalezas avançadas Numão, Longroiva, Marialva e Trancoso.

Depois a fronteira acompanhava o rio Zêzere, sem chegar ao Tejo.

Ao sul do Mondego, a defesa o Condado baseava-se em castelos isolados como Penalva, Soure, Arouca, Miranda do Corvo, Penela e Ladeia.

A zona de Leiria era um limite oscilante, de onde se podia partir em busca de novos territórios.

O Tratado de Zamora

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Na sequência de Ourique e Valdevez Portugal passa a ser uma unidade política autónoma relativamente ao reino de Leão.

O arcebispo de Braga, D. João Peculiar, principal condutor da política externa do príncipe português na fundação do novo reino, procurou conciliar Afonso VII de Leão e Afonso Henriques, conseguindo que eles se encontrassem em Zamora nos dias 4 e 5 de Outubro de 1143 na presença do Cardeal Guido de Vico, delegado do Papa Inocêncio II, o que por sua vez liga a Cúria Romana ao acordo celebrado.

É que a D. Afonso Henriques, para além de interessar o reconhecimento político da existência de um novo reino, interessava-lhe a paz com Castela e Leão, de forma a permitir a realização de novas campanhas contra os mouros.

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Apesar de serem escassas as informações sobre a conferência de Zamora, sabe-se que a chancelaria leonesa passou a referir Afonso Henriques como rei, logo após a sua realização.

Menendez Pidal (12) reproduz a fórmula de vários documentos expedidos em Zamora nos dias 4 e 5 de Outubro por D. Afonso VII, fazendo menção ao encontro dos dois primos e do reconhecimento do título de rei a D. Afonso Henriques: «Facta carta Zamorae tempore quo Guido, Romanae Ecclesiae Cardinalis, consilium in Valleoleti celebravit et ad colloquium Regis Portugalie cum Imperatore venit.» (que numa tradução livre significa: Carta feita em Zamora no tempo em que Guido, Cardeal da Igreja Romana, veio ao Concílio celebrado em Valhadolid e à conferência com o Rei de Portugal e o Imperador). E comenta adiante: «Assim Portugal, nas suas tardias origens, pelo premente cuidado de garantir sua absoluta independência, nascia desligado de toda a tradição imperial que pesava sobre os reinos antigos; nascia permitindo a visão da nova época histórica que vai surgir, e já se mostrava firme no que depois foi: mais afastado do grande núcleo de Espanha que os dois reinos antigos de Navarra e Aragão.»

Sobre o assunto escreveu Alexandre Herculano: «A separação era, enfim, um facto materialmente consumado e completo, fosse qual fosse a dependência nominal em que o seu príncipe ficasse do imperador» (13).

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O encontro de Zamora culminou com o reconhecimento De iure de Portugal como Estado independente e do reconhecimento por parte de Afonso VII do título de Rei a Afonso Henriques, (título que já era por ele usado) e que via na realeza deste um reforço simbólico do seu título imperial, já que se afirmava como “rei de reis”, encobrindo ao mesmo tempo o falhanço da sua ineptidão para o subordinar, concedendo-lhe o senhorio de Astorga, o que fazia com que Afonso Henriques, à luz do direito da época, fosse considerado seu vassalo em virtude desta dependência nominal. Todavia, como este senhorio (de Astorga) se encontrava fora dos limites do reino, não afectava a independência política de Portugal, até porque D. Afonso Henriques nunca prestou vassalagem a Afonso VII, sendo caso único de entre todos os reis existentes na península Ibérica.

Ratificado o acordo político entre os dois primos, o Delegado do Papa recebe a obediência do novo reino, passando D. Afonso Henriques a considerar-se como vassalo da Santa Sé. Facto que só por si, não garantiu de imediato o reconhecimento pela Santa Sé do título de Rei. Como diz Fortunado de Almeida (14) até ao Papa Alexandre III, D. Afonso Henriques era apenas tratado por «Dux portucalensis».

Para o Prof. Soarez Martinez (15) «… naquela cidade leonesa de Zamora, onde, em 1125, D. Afonso Henriques se armara a si próprio cavaleiro, segundo o costume dos reis, foi ele reconhecido como soberano pelo rei de Leão, de quem dependia até aí o Condado Portucalense. A separação política de Portugal operou-se por esse reconhecimento».

Sob o ponto de vista das relações externas, a história de Portugal começa em 1143 quando surge com entidade própria, como sujeito de Direito Internacional, embora ainda sem o essencial reconhecimento da Santa Sé.

O reconhecimento pontifício do Novo Reino

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O uso do título de Rei por D. Afonso Henriques e o seu reconhecimento na Península Ibérica era indispensável para que Portugal fosse aceite na comunidade internacional como Estado independente. Para se compreender tal facto, é preciso conhecer a organização da sociedade internacional da época medieval.

As relações entre os Estados formou-se sob a influência do cristianismo, através da subordinação de todos os príncipes cristãos ao Papa, já que era o Sumo Pontífice que governava toda a Cristandade nos assuntos espirituais e conduzia os governantes a alcançarem os objectivos da Igreja, como entidade promotora da salvação dos homens.

É a Respublica Christiana que formava uma verdadeira comunidade subordinada no domínio espiritual à autoridade do Papa e no domínio temporal à autoridade do Imperador.

De acordo com o Prof. Silva Cunha, “Sob a égide do Pontífice, a Respublica Christiana, face ao mundo dos infiéis e dos pagãos, aparecia como um corpo organizado, com um Direito regulador das relações entre os seus membros e dotada de uma força de expansão que resultava do imperativo de cumprir o preceito evangélico de dilatar a fé Cristã” (16).

Para que um novo Estado entre na sociedade internacional é necessário que seja reconhecido como Estado idóneo, e no século XII o Sumo Pontífice arrogava o poder de fazer esse reconhecimento relativamente ao ingresso na Cristandade.

Nessa medida o reconhecimento pela Santa Sé do novo reino de Portugal, era muito importante, uma vez que garantia a sua independência face a qualquer tentativa de absorção por parte de Leão.

Por isso, a 13 de Dezembro de 1143, Afonso Henriques dirigiu uma carta “Claves Regni Celorum” ao Papa Inocêncio II, de que foi portador para Roma o arcebispo de Braga, D. João Peculiar, declarando que tinha feito homenagem à Sé Apostólica nas mãos do Cardeal Guido de Vico como cavaleiro de São Pedro “miles sancti petri”. E que se obrigava a pagar à Santa Sé o censo anual de quatro onças de ouro (o que respondia aos apelos da mesma), sob a condição de o Papa defender a sua honra e a dignidade da sua «terra», que se enquadra no espírito da época de subordinar o poder político à autoridade pontifícia. À época, as obrigações de vassalagem à Santa Sé eram as de pagar um censo anual, proteger a Igreja e dilatar a fé cristã, devendo naturalmente auxílio e conselho ao Pontífice sempre que este os solicitasse.

No mesmo documento D. Afonso Henriques afirmava que não reconhecia a autoridade de nenhum outro poder eclesiástico ou secular, a não ser o do Papa, o que significava que o nosso rei deixava de estar vinculado ao rei de Leão e passava apenas a ser vassalo do Papa.

Não se conhece nenhuma reacção de Afonso VII até 1148, altura em que protestou junto do Papa Eugénio III, pelo facto da Santa Sé ter aceite a vassalagem de Portugal.

Esta Carta trouxe vantagens consideráveis a D. Afonso Henriques, pois no caso da violação por parte de Afonso VII das cláusulas estabelecidas em Zamora, permitia-lhe recorrer à medição papal. Além disso, possibilitava a criação de bispados no território sem qualquer interferência do monarca leonês, como aconteceu de facto em 1146, com a nomeação de novos bispos para as dioceses de Viseu e Lamego.

Igualmente a pretensão de Braga ao primado constitui um factor importantíssimo no processo de autonomia política de Portugal, no qual muito influiu o nacionalismo do seu clero, avesso à influência tanto de Toledo como de Santiago de Compostela já que, como observa o Prof. Suárez Fernandez,«una monarquia se define en el siglo XII como la forma política de una determinada comunidad cristianas (17). Contudo, a oposição dos arcebispos de Toledo ao primado dos arcebispos de Braga, contribui para a demora no reconhecimento do título de rei a D. Afonso Henriques.

A resposta do Papado às pretensões de D. Afonso Henriques não foi a esperada e Lúcio II, que respondeu a D. Afonso Henriques na sua carta Devotionem tuam, de 1 de Maio de 1144, limitando-se a louvar o procedimento de D. Afonso Henriques, prometendo-lhe protecção espiritual e material, para ele e seus sucessores, contra o ataque dos «inimigos visíveis e invisíveis», tratando-o por dux portugalensis e designava por «terras» os seus domínios, quando na carta de vassalagem D. Afonso Henriques se intitulava «rei».

As negociações duraram desde 1143, data do primeiro juramento de vassalagem e da carta de enfeudamento do rei português (Claves regni coelorum) até 1179, ano em que o papa Alexandre III, pela bula Manifestis probatum est, de 23 de Maio, toma sob a protecção da Santa Sé o Reino de Portugal «cum integritate honoris regni et dignitate que ad reges pertinent» (com inteiras honras de reino e a dignidade que aos reis pertence). Nesta Bula, o Papa louvou os serviços prestados à Igreja por Portugal e, em troca de um censo anual de dois marcos de ouro, concede a D. Afonso Henriques, as terras que este conquistou aos mouros. Efetivamente, a Sé Apostólica via no combate que D. Afonso Henriques travava com a mourama um espírito de cruzada contra o infiel que servia, na perfeição, os ideais do cristianismo e, à medida que D. Afonso Henriques ia fortalecendo a sua autoridade e que o Reino aumentava as suas fronteiras, Roma foi obrigada ao inevitável: o reconhecimento da realeza Afonsina e da existência de um novo reino.

 José Aníbal Marinho Gomes

NOTAS:
(1) Ao outro genro, o conde D. Raimundo de Borgonha (a), deu Afonso VI a Galiza e a mão de sua filha Urraca. (a) D. Raimundo e D. Henrique não eram primos como diz a historiografia tradicional, mas apenas membros de duas famílias diferentes unidas pelo casamento), José Mattoso in História de Portugal, 2.º Vol., pág. 24, Ed. Círculo de Leitores, 1993.
(2) Na chancelaria condal, os documentos são sempre expedidos em nome dos dois: «Ego comite domno Henrico uno pariter cum uxore mea infante dona Tharasia...» (Eu Conde D. Henrique por mim e igualmente com a Infanta D. Teresa...), Marcello Caetano, História do Direito Português, Ed. Verbo, 1981, Vol. I, pág. 138/139.
(3) Num diploma de 27-VI-1100 D. Henrique é dito tenente de Portugal - território fronteira do reino até aqui administrado por seu cunhado D. Raimundo de Borgonha - pro sua hereditas (in Luiz de Mello Vaz de São Payo, A Ascendência de D. Afonso Henriques, in Raízes & Memórias, Ed. da Associação Portuguesa de Genealogia, Vol. VIII, pág. 34, 1992).
(4) José Mattoso, op. cit. 2.º Vol., pág. 49.
(5) Luís de Mello Vaz de São Payo, op. cit. Vol. VIII, pág. 35.
(6) Os livros de linhagens atribuem a D. Teresa um segundo casamento com Bermudo Peres de Trava e teria sido esta união ou tentativa que impediu, depois, um verdadeiro matrimónio com Fernão Peres de Trava – irmão daquele – já que, segundo o direito canónico, uma união anterior seria um impedimento a um casamento posterior com um consanguíneo próximo. José Mattoso, op. cit. pág. 48.
(7) Crespo, José Santiago. Blasones Y Linages de Galicia, Tomo I, pág. 355-356, Ed. Boreal, 1997, A Coruña.
(8) José Mattoso, op. cit. pág. 54.
(9) Em virtude do título de D. Teresa (de condessa) ser anterior ao do seu filho.
(10) Crónica do Conde D. Henrique, D. Teresa e Infante D. Afonso, nova ed., Livraria Civilização, Porto, 1944, pág. 209.
(11) Carl Erdmann. O Papado e Portugal no primeiro século da História Portuguesa, Coimbra, 1935, Publicações do Instituto alemão da Universidade de Coimbra, pág. 35.
(12) Menendez Pidal. España y su Historia, I, pág. 601.
(13) Alexandre Herculano. Hist. de Portugal, 1.º ed., Vol. I, pág. 342.
(14) Fortunado de Almeida. História de Portugal, ed. do autor, Coimbra, 1922, Vol. I, pág. 174.
(15) Martinez, Pedro Soares. História Diplomática de Portugal, Editorial Verbo, 1986, pág. 25.
(16) Silva Cunha. História das Instituições. Lições Policopiadas, Ed. Dep. Pedagógico da Universidade Livre do Porto, Ano lectivo de 1980/81, Vol. I, pág. 191.
(17) Suárez Fernandez. Historia de España Antigua y Media, Tomo I, Madrid, 1976, p. 572.


(*) Comunicação apresentada no dia 5 de Outubro de 2016, no Salão Nobre da Universidade do Minho em Braga, no II Colóquio sobre o Tratado de Zamora, organizado pela Real Associação de Braga e co-organização do CINE.UM – Cineclube da Universidade do Minho, no qual participaram o Prof. Dr. José Augusto Sottomayor Pizarro, o Prof. Dr. Luís Carlos Ferreira do Amaral, ambos professores da Faculdade de Letras da Universidade do Porto; Mestre Dr. Artur Barros Moreira, investigador do CECS – Universidade do Minho.
O Prof. Sottomayor Pizarro debruçou-se sobre “A relação do Rei com a nobreza”, enquanto o Prof. Luís Ferreira do Amaral abordou “A relação de D. Afonso Henriques com o Clero”; o Mestre Barros Moreira escolheu para tema o “Tratado de Zamora - Perspectiva diplomática”.

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