O filão de mitos a respeito da suposta preponderância da fidalguia no Portugal Antigo merece-nos os maiores cuidados, pois não só são amiúde inverídicos, carregando lamentáveis confusões, como prolongam preconceitos instilados ao longo do século XIX, podendo-se, pois, dizer que são mera propaganda que urge rebater.
Na fase tardia do paradigma corporativo, ou seja, no século XVII, a sociedade repartida em três estados (Clero, Nobreza e Povo) já só funcionava como largo quadro de referência, posto que a realidade social era bem mais complexa e em permanente mudança. A mudança iniciara-se em finais da Idade Média, mas no século XVI era já bem patente. A ascensão dos letrados e a queda dos fidalgos parecia acompanhar uma dinâmica social irreprimível, na qual o apoio da Coroa parecia cada vez mais inclinar-se para o favorecimento do Povo. A prová-lo, a legislação produzida durante o governo de Dom Sebastião marcou uma grande mudança na governação das cidades. Em 1572, o Rei afirmava-o claramente numa lei sobre o estatuto dos governantes da capital portuguesa: “daqui em diante, haja na Câmara um presidente fidalgo principal e três vereadores (do braço popular) que sejam seus desembargadores e sigam os cargos que adiante vereis” (Livro de Reis, vol. VIII, pág. 88).
Esta evolução democrática tornou-se evidente na estruturação da sociedade portuguesa do século XVII. Depois das pessoas de condição “vil” – actividades braçais – encontrava-se um grupo a que os tratadistas chamavam de “Estado do Meio” ou “Classe Média do Antigo Regime”, ou seja, aquelas que desempenhavam funções inicialmente consideradas “mecânicas” (lentes universitários, tabeliães, livreiros, artistas, cirurgiões, boticários) mas que tinham sofrido um processo de ascensão social que as colocava junto do estado de nobreza. Também os desembargadores eram considerados nobres, tendo direito a cavalo e porte de armas. Depois, advogados e escrivães passaram a gozar de privilégios similares aos dos nobres. Ao contrário da nobreza generativa – aquela que se transmitia de pais para filhos – a sua nobreza era reconhecida no quadro das funções que desempenhavam.
O mesmo vinha acontecendo paulatinamente aos produtores agrícolas. Em finais do século XVI, os lavradores – ou seja, proprietários de terras – passaram a ser considerados em estado de nobreza, sendo isentos de obrigações militares. O mesmo acontecia aos concelhos. No século XVII, os concelhos constituíam autênticos senhorios colectivos com atribuição de poderes públicos equivalentes aos nobres, animados por elites locais saídas do povo e que se pautavam pelos valores sociais e de honra próprios da nobreza de linhagem. De facto, eram cavaleiros, ou seja, tratados como se fossem da pequena nobreza, pelo que tais homens não podiam sofrer a humilhação de ser descavalgados – ou seja, privados da sua montada. Descavalgar um homem da aristocracia popular era crime severamente punido.
Também a dinâmica imperial permitiu que largas faixas da população envolvida na gestão e defesa do Ultramar ultrapassassem a condição social em que haviam nascido. Ao partirem para o Oriente ao serviço da Coroa, aos filhos dos membros da Casa dos Vinte e Quatro era reconhecida a condição de nobreza, o mesmo acontecendo depois com a maioria dos militares de pequena patente que saíam a barra do Tejo para o cumprimento de missões no Norte de África, Brasil e Oriente; daí a conhecida expressão de “Fidalgos do Cabo da Boa Esperança”.
Dir-se-ia que pelos finais do Antigo Regime, a nobreza de mérito – ou seja, aquela saída do serviço do Rei – sobrepujara há muito a velha nobreza de sangue. Nas Cortes mandadas reunir por Dom Miguel para o aclamar Rei, dois terços dos representantes da nobreza eram titulares há menos de três gerações, ou seja, até a nobreza titular deixara de ser uma casta fechada de linhagens que se perdiam na bruma dos tempos, passando, ela também a ser uma ordem muito porosa e aberta à crescente entrada de homens de valor saídos do povo.
Miguel Castelo-Branco
Para ler mais:
Ângela Barreto Xavier, António Manuel Hespanha. A representação da sociedade e do poder: paradigmas políticos e tradições literárias, in História de Portugal (dir. Matoso), vol. IV. Lisboa: Círculo de Leitores, 1993.
António Manuel Hespanha, História das instituições: épocas medieval e moderna. Coimbra: Almedina, 1982.
Nova Portugalidade
DEUS - PÁTRIA - REI
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