Entre as recordações mais vivas que tenho da infância, a velha
sala do meu tio José na casa de Tendais é uma das mais recorrentes.
O fascínio não era dedicado à mesa em si, mas aos adornos que encimavam
a mesma – duas pequenas esculturas de ferro figurando cavaleiros
medievais, em posição de ataque, como se se confrontassem numa
justa. A alma da casa e do seu velho dono pareciam revolver no
mesmo espírito desta cena – as imagens, tal como o meu tio, enchiam
a casa de uma dureza, de um rigor frio e velho, uma espécie de inverno
branco que, em conjunto com a luz que entrava pelos cortinados da
janela, enche as recordações daqueles dias com uma cor que cega.
Os corredores gelados da casa de Tendais, especialmente para a mente
de uma criança, criaram em mim uma impressão muito forte, que
acompanhou na pele os ensinamentos que os homens da minha família,
o meu pai, tios e avôs, partilharam comigo.
Lições de dever, de coragem, de generosidade, de caridade.
Levei comigo essas palavras e agucei as minhas conclusões ao
longo dos anos. Questionei durante muito tempo os valores familiares.
Um deles, o mais pitoresco, a tradição monárquica, foi talvez o que
mais abalos sofreu. Enfrentei a dúvida que tantos jovens
monárquicos enfrentam: porque razão nos devemos bater por uma ideia
que mais não é do que uma afirmação estética, uma diferenciação
social que, para os que não sofrem do pedantismo snob da suposta
velha aristocracia, é mais prejudicial do que proveitoso?
A verdade é que a Monarquia não é palco para as vaidades da
consanguinidade de sangue azul. A Monarquia não é também, ao
contrário de tantos cientista políticos, um “atenuador” das lutas
partidárias das democracias modernas. Isto não são monarquias, são
velhas situações.
A Monarquia é a conclusão do Pensamento, é a Árvore, e a flor desta
Árvore é o ideal da Cavalaria.
Numa coisa os democratas da monarquia têm razão: a Monarquia
controla a paixão pelo poder dos poderosos. Mas fá-lo porque substitui
essa paixão pelo amor ao serviço da Pátria, pelo amor aos feitos corajosos,
pelo amor aos mais fracos e desprotegidos.
Numa coisa os snobs hemofílicos da monarquia têm razão: a Monarquia
enobrece. Mas a Monarquia não enobrece os inúteis e os pedantes,
os covardes e irresponsáveis, os que assumem as benesses da sua
casta como direitos adquiridos. A monarquia enobrece os que vivem
à lei da nobreza. Que nobreza?
O ideal de nobreza merece ser aperfeiçoado. A nobreza não depende
de um canudo universitário ou de um salário milionário – encontra-se
em todas as camadas sociais, pertence a todos os grupos profissionais
e a todas as actividades que garantem o bem comum na sociedade
portuguesa. Encontra-se no estudante que luta por uma bolsa
ou por conseguir o dinheiro das propinas, no empregado fabril ameaçado
pelo fecho da sua fábrica, no desempregado que todos os dias navega
anúncios atrás de anúncios de emprego na Internet.
Quando tantos e tantos destes homens e mulheres, na sua luta diária,
encontram tempo e disponibilidade para dar de si aos outros, é que
nos apercebemos que o ideal de cavalaria, aquela dura rigidez do dever,
naquela alma de ferro que se demonstra nos mais calorosos actos
de amor, de facto existe, mais forte do que nunca, somente à espera
de alguém ou algo que lhe dê significado. Esse alguém é, sem
dúvida, a monarquia e esse algo é a necessidade de ser monárquico.
Manuel Marques Pinto de Rezende
Fonte: o espectador portuguez
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