Integrado desde 1580 na monarquia dos Habsburgos, Portugal herdou deles inimigos que antes não tivera e conflitos de que sempre tentara abster-se. Em 1592, o apresamento do galeão português A Madre de Deus por piratas ingleses despertou para o mundo protestante, inimigo de Lisboa, a consciência do poderio económico de Portugal e, nesse poderio, a centralidade da Ásia portuguesa: sozinho, um só dos galeões do Rei de Portugal havia valido à Inglaterra meio milhão de libras esterlinas, o que equivalia a metade do tesouro inglês. Aquela demonstração da fabulosa riqueza que havia a obter a leste excitou os ingleses. Os holandeses, aliados daqueles no corte com o Papa e na oposição ao império católico de portugueses e espanhóis, entusiasmaram-se também. Fundada a Companhia Holandesa das Índias Orientais, ou VOC, esta instala-se no Índico e na Insulíndia; em 1603, copiando a Inglaterra, a Holanda captura perto de Singapura o imenso galeão português Santa Catarina. Tão magnífico foi o saque que o navio permitiu aumentar em 50% os capitais da Companhia, injecção de dinheiros que a VOC usaria para expandir-se rapidamente por todo o Oriente.
Recebida da Espanha, pois, a inimizade do mundo protestante - até à União, a política portuguesa fora pragmática: no reino e no império, repressão do protestantismo; na Europa, boas relações comerciais com a Holanda e a Inglaterra - Portugal achou-se à mercê da cobiça de ingleses e, especialmente, de holandeses. O enfrentamento luso-holandês duraria sessenta longos anos e constituiria a primeira guerra verdadeiramente mundial da História do Homem: travá-la-iam portugueses e flamengos, a Cruz de Cristo contra a insígnia da VOC, carraca e filibote, no Brasil, em África, na Índia, na China e na Insulíndia. Portugal vencê-la-ia a ocidente, preservando o Brasil e Angola, e perdê-la-ia a Oriente, com os grandes bancos de Amesterdão a tomar o Ceilão, Malaca e grande parte das nossas possessões indianas.
Em 1622, os holandeses tentaram igualmente assenhorear-se de Macau. O ataque ao Santa Catarina, vinte anos antes, fizera a fortuna dos accionistas da Companhia e catapultara a empresa no seu projecto de dominação da Ásia. O que convirá esclarecer é que o Santa Catarina não transportava especiaria, mas porcelana da China. O primeiro contacto da VOC com as riquezas da Ásia dera-se, pois, através de Macau, e Macau, porta da China que era então, manteve-se solidamente incrustado na cabeça dos decisores holandeses. Em Maio de 1622, apareceram frente a Macau quatro fortes embarcações inimigas. Duas exibiam o pavilhão azul, laranja e branco da VOC; outras duas, inglesas, o pavilhão daquele país. Tentaram uma primeira investida, que Lopo Sarmento de Carvalho, capitão dos portugueses, parou pela construção de um banco de areia nas praias. Vencidos naquele dia, confiantes no próximo, os holandeses preferiram esperar nos navios e impor completo cerco marítimo à cidade.
Macau achava-se precariamente defendida. Conhecedores dos ciclos do comércio e da situação local, os holandeses haviam escolhido para a invasão data oportuna. Acabada de abrir a temporada comercial, grande parte da população reinol da cidade - é dizer, de origem metropolitana - encontrava-se em Cantão; pior, a invasão da China Ming pelos Manchus havia ditado um pedido de auxílio de Pequim aos portugueses. Aliado do Imperador, Portugal honrara o seu pedido de ajuda e enviara para norte um poderoso contingente de quatrocentos mosqueteiros. Em Macau, pois, gente pouca e mal armada: cinquenta soldados e, entre rapazes e adultos, reinóis e macaenses, coisa de cem homens capazes de pegar em armas. Tão pobre era a força portuguesa que defendia a cidade que os holandeses haviam esperado, de início, tomá-la com apenas os quatro navios chegados em Maio. Os cuidados de Sarmento de Carvalho haviam-nos forçado a pedir reforços a Batávia, bastião da VOC na Insulíndia. Saíram de lá alguns navios. Outros puseram-se a caminho de Macau via Manila, nas Filipinas, onde cercavam a guarnição espanhola.
A frota holandesa, já reforçada, apresentou-se frente a Macau a 22 de Junho de 1622. Era uma armada forte de dezassete navios, dois dos quais ingleses, e que transportava um contingente terrestre de mil e quinhentos homens. Os combates iniciaram-se quando a força naval holandesa, comandada pelo Almirante Cornelis Reijersen, despachou contra o Forte de São Francisco dois navios. Deram-se mal os flamengos: o forte resistiu, acabando inutilizada - e, mais tarde, afundada - pela artilharia portuguesa uma das embarcações inimigas. Reijersen ordenou então um ataque geral. De acordo com Montalto de Jesus em "Historic Macau", desceram sobre as praias da cidade oitocentos holandeses, juntamente com número não insignificante de japoneses e malaios que se haviam juntado à expedição flamenga por sede de lucro. Os ingleses, a quem havia sido negada participação no saque, recusaram-se a tomar parte no desembarque.
Com a guarnição de Macau distante e a força portuguesa muito reduzida, a salvação da cidade foi confiada aos cento e cinquenta portugueses metropolitanos e luso-chineses, assim como aos escravos negros ali residentes. Uns e outros bateram-se com inegável bravura. Montalto e outros narram a impossível defesa das praias por António Rodrigues Cavalinho, cinco outros europeus e algumas dezenas de africanos. Disparando contra o fumo em que a força anfíbia holandesa se escondia, estima-se que tenham abatido quarenta adversários. Retiraram-se depois para o centro perseguidos, e quase batidos, pelas companhias holandesas. Mas estas não puderam ser impedidas de tomar a costa, e assenhorearam-se delas pagando pesado preço. Marcharam, depois, para o coração de Macau. A população civil, consternada, deixou-se dominar pelo pânico: os chineses - então ditos "chinas" - fugiram para o campo; as famílias cristãs, europeias e luso-chinesas, retiraram-se para o grande seminário jesuítico de São Paulo. Os jesuítas, ali muito numerosos, instalaram-se por sua vez na Fortaleza do Monte, de onde animaram furiosos fogos de artilharia contra o invasor.
Reijersen, liderando a infantaria da VOC, penetrou a cidade até ao centro. E parece ter sido aí que, em notável reviravolta, a sorte mudou de lado e os holandeses foram postos em retirada. Da Fortaleza do Monte, o Padre Giacomo Rhó, na China ao serviço da Companhia de Jesus e da Coroa portuguesa, fez fogo de canhão sobre a tropa flamenga. Rhó era, ora, grande matemático; o padre seria, depois deste episódio, convidado pelo Imperador Chongzhen da China para Pequim e lá criaria, e lideraria, o Observatório Imperial. O sacerdote terá aplicado os conhecimentos que obtivera em Goa, onde estudara, para fazer chegar aos homens da Holanda tiros precisos. Um deles, parece, fez rebentar o carregamento de pólvora que o inimigo trouxera dos navios para terra. A explosão foi imensa, matando soldados e deixando os sobreviventes sem modo de resistência. Animados, os defensores - numa massa humana em que os negros e os luso-chineses seriam clara maioria - lançaram-se sobre eles, deixando-os sem reacção que não fosse a da fuga. O que se seguiu foi arrepiante, miserável retirada: a tropa holandesa correu, sem honra e sem glória, rumo ao mar; Lopo Sarmento de Carvalho e António Rodrigues Cavalinho inspiraram a carga portuguesa e resolveram o dia a favor das nossas armas. No fim do dia, multidão de cadáveres altos e louros - eis o comentário que se retira de várias fontes portuguesas - adornavam as ruas e praias de Macau. Divergem apenas os relatos quanto à dimensão das perdas de parte a parte. Para os portugueses, entre 300 e 800 holandeses mortos; na documentação da VOC, 136 mortos e 126 feridos. Charles Ralph Boxer, grande autoridade da História do império oriental de Portugal, vê maior merecimento na informação prestada pelos portugueses e coloca as mortes holandesas acima das trezentas. Certo é que, destas, se contam sete capitães, quatro tenentes e sete bandeiras. Para os portugueses, apenas seis europeus e número indeterminado, mas baixo, de africanos, assim como 20 feridos.
A enorme humilhação sofrida pelos holandeses às mãos de Portugal em Macau foi motivo de consternação geral em Batávia. O governador-geral holandês, Coen, atribuiu a resistência portuguesa à coragem dos africanos que serviam Portugal, muitos deles escravos. Terá dito que "os escravos dos portugueses serviram-nos com tal fidelidade que foram eles quem nos derrotou em Macau". O papel dos contingentes africanos, independentemente da importância da artilharia de Rhó, da bravura de Cavalinho e do comando de Sarmento de Carvalho, parece ter sido verdadeiramente determinante para a defesa da cidade. Os portugueses de Macau reconheceram-no libertando "grandes números de escravos" imediatamente após a vitória. Boxer refere igualmente que o vice-rei chinês de Cantão, admirado, mandou grandes quantidades de alimentos para Macau para que fossem oferecidos aos mais distintos dos combatentes africanos.
Sem comentários:
Enviar um comentário