Coube a Frei Bernardo da Cruz, capelão-mor da armada portuguesa, deixar-nos na Crónica de El-Rei Dom Sebastião a memória de um dos mais prodigiosos acontecimentos gastronómicos da petite-histoire portuguesa do século XVI.
Na quadra natalícia de 1576, germinava já o magno plano de uma campanha militar em África, Dom Sebastião de Portugal e o seu tio Filipe II de Espanha encontraram-se em Guadalupe, povoado situado na Estremadura espanhola, para lá de Cáceres. Como ditava o protocolo, cabia ao anfitrião presentear o real hóspede com um lauto banquete de acolhimento, e ao convidado retribuir com um novo banquete por ocasião da sua partida.
Como era prática, a quadra festiva da celebração do nascimento de Jesus Cristo era marcada por imoderado consumo de viandas, doçarias e vinhos, a que se seguia uma semana de dieta que interditava alimentos provenientes dos matadouros, quaisquer que estes fossem, até mesmo aves e enchidos. Dom Sebastião, colocado perante o dilema de não poder servir carnes à corte espanhola, pediu parecer aos seus conselheiros eclesiásticos, que logo encontraram uma solução concordante com os preceitos religiosos, mas que exigia uma pesada logística num tempo em que não havia meios outros que o sal para preservar os alimentos, e as especiarias para dissimular a sua degradação. A comitiva portuguesa saiu de Lisboa no dia 11 de Dezembro e, dias depois, uma imensa caravana de mulas seguiu na peugada do Rei português. Felizmente, fazia um frio seco e inclemente que favorecia a carga colocada no dorso dos animais. A coluna deslocava-se dia e noite sem parar, sendo preciso que se renovassem os animais de carga. Finalmente, dias depois do Natal, chegaram a Guadalupe.
Grande expectativa e curiosidade havia no círculo do Rei de Espanha. Como podia Dom Sebastião mostrar-se digno da sua condição de grande Príncipe cristão se se estava em semana de dieta rigorosa?
Trancaram-se em rigoroso segredo os cozinheiros e criados nas grandes cozinhas do Mosteiro de Guadalupe e ali estiveram um dia e uma noite a preparar o banquete. Quando, finalmente, se abriram as portas da cozinha e a procissão de criados transportou para a grande sala onde estavam os Reis e a alta nobreza das duas Coroas, o assombro foi geral. Dom Sebastião serviu ao Rei espanhol 190 pratos de peixe, marisco, ostras, guisados e pastéis de legumes, fritos, cozidos, conservas imersas em escabeche, numa tão grande gama de iguarias que a todos deixou deslumbrados. Após o sardapalesco e interminável jantar de peixe e marisco, entrou nova maré de sabores, desta vez doces nunca antes provados pelos palatos espanhóis.
Tão farta era a mesa que, vendo estoirados o Rei e grandes de Espanha, Dom Sebastião mostrou que faltava demonstar uma vez mais a sua qualidade de Príncipe Cristão, mandando chamar toda a população da vila de Guadalupe para distribuir o manjar real.
Miguel Castelo-Branco
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