A chegada dos portugueses ao Mar da China provocou natural inquietação entre os chineses, confrontados com estes novos intrusos na ordem internacional sinocêntrica conformadora das relações entre actores. Ao sistema internacional existente no Extremo-Oriente antes do advento da ordem internacional contemporânea, convencionou-se chamar sistema tributário. Tendo por vértice o Império do Meio, ao qual oito politéias circunvizinhas prestavam tributo – Coreia, arquipélago Ruy Kyu, Tonquim-Aname, depois Vietname; Sião, Birmânia, Principados Laos, arquipélago Sulu, Nepal, Butão e Turfan - para além de quatro reinos vassalos situados na orla periférica, ou seja, pacificados e em fase de sinização (Manchúria, Mongólia, Turquestão chinês e Tibete), decompunha-se do topo à base numa rede precisa e vertical, sem possibilidade de replicação, pois cada relação era única ligando os actores em obrigações e direitos específicos. Marcada pela concepção confuciana da ordem cósmica onde cada actor sabia o seu lugar no mundo, aceitava os seus deveres e responsabilidades e reconhecia superiores e inferiores. O sistema obedecia a uma cultura diplomática muito codificada. O sistema tributário partia de um princípio estabilizador – a superioridade da China – e ganhava consistência no plano das relações reais entre os actores. Alguns, iguais em potencial, aceitavam tacitamente a desigualdade conceptual do sistema e norteavam as relações com grande realismo, não deixando de cultivar o equívoco como estabilizador de boas relações com as autoridades chinesas. Ao contrário do sistema internacional europeu, das suas práticas e cultura, o sistema tributário reduzia à mínima expressão os contactos entre actores, desconhecendo práticas de negociação feitas de cedências e busca de consenso, convertendo o ritual em matéria de facto das relações. Decorria desta concepção a inexistência de órgãos governativos com atribuições exclusivas para o exercício exclusivo da política externa, assim como a inexistência de tratados escritos.
Não deixa, pois, de estranhar que os primeiros contactos entre portugueses e chineses colocassem em relevo a estranheza mútua, alguma suspeição, muitos atritos protocolares, susceptibilidades ofendidas e, mesmo, violência. Para os chineses, o assentamento de comerciantes bárbaros barbudos nas suas costas, não diferia da indignação provocada pela infestação de piratas, bandidos e outros malfeitores, gente insubmissa, desrespeitadora das leis, “corruptora de usos e costumes chineses”(3). Para a turbulência dos primeiros contactos terão sido determinantes a desobediência – ou pelo menos a informalidade – com que os mercadores portugueses de Malaca iniciaram o trato comercial com a China (1513), a erecção de um fortim na desembocadura do Rio das Pérolas (1517), o envio por D. Manuel I de uma carta tida por irreverente na fórmula de tratamento devida ao imperador Zhèngdé e até as cortesias europeias desconhecidas entre os chineses, nomeadamente a de salvar com pólvora seca à vista de um porto amigo. Em 1522, pese advertências feitas para que não regressassem a Cantão, a pequena frota do trato sob comando de Martim Afonso de Melo foi atacada por juncos chineses, evadindo-se a custo e regressando a Malaca. Tendo fracassado o intuito de estabelecer uma feitoria nas proximidades de Cantão, a actividade portuguesa revelou-se mais a norte, em Liampó e Chinchéu, na costa de Zhejiang, ali desenvolvendo atividade comercial sem autorização das autoridades locais, comércio clandestino florescente objeto de frequentes queixas. Em finais da década de 1540, uma vasta operação policial, fantasiada e empolada, é certo, por Fernão Mendes Pinto, mas acção repressiva que não deixou de ser minuciosamente reportada pelo governador Zhu Wan ao poder central, eliminou esse foco de perturbação da vida da província. Anos volvidos, já afeiçoados aos modos asiáticos, sempre cultivando o paradoxo, usando da diplomacia formal como da informal, os portugueses de novo se estabeleceram na foz do Rio das Pérolas. Do pano das tendas, o bandel transformou-se em madeira dos armazéns e, logo, na pedra dos edifícios desafiantes Os Folangji, agora intermediários entre a China e o mundo exterior, ora gozando da indulgência da ordem legal pluralista que a nova dinastia Qin iria promover na sua fase inicial, ora submetendo-se a ásperos tratos pelos mandarins locais, fariam de Macau a única cidade de feição europeia em terra firme chinesa.
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