segunda-feira, 8 de junho de 2015

Dom Manuel II, O Bibliógrafo

 

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Quisemos mostrar, ou antes tornar conhecidos, os nossos livros. 0 nosso intuito é simples; tentando dar vida a esses livros, procuramos deixar ver a obra Portuguesa, especialmente nos séculos XV e XVI, através dos «livros de forma» que foram impressos em Portugal, acompanhando-os de alguns «de penna», e de outros escritos em linguagem, mas publicados fora do país. Os livros são amigos silenciosos e fiéis junto dos quais se aprende a lição da vida. São o ensinamento, e em muitos casos a prova, da época que se deseja descrever; aqueles que são coevos desses tempos, podemos, certamente, considerá-los como a melhor documentação — exceptuando os manuscritos originais — para essas pesquisas. A meta do nosso esforço é erguer bem alto o nome do nosso país, demonstrar os feitos dos Portugueses e, servindo a nossa Pátria, «levantar a bandeira dos triunfos dela». É um trabalho sem pretensões, que nada vem dizer de novo, e que nada julga ensinar, mas que, esperamos, provará o nosso amor pela Pátria querida. E se alcançarmos esse fim ambicionado, teremos a consolação suprema de um dever cumprido.’, El-Rei Dom Manuel II de Portugal, in ‘Introdução do Volume I da obra de D. Manuel II, «Livros Antigos Portugueses 1489-1600».
 
O gosto pelos livros sempre fora um deleite para D. Manuel II, mas os afazeres primeiro de príncipe ‘suplente’ e, em consequência do terrível regicídio, de Rei, impossibilitavam-no de se dedicar como desejaria a esta paixão. Ora, com o golpe republicano que, contra a vontade geral, derrubou a Monarquia, nos seus anos de exílio, Dom Manuel II dedicou-se aos livros e aplicou-se nos estudos literários.
 
Primorosamente educado, nunca fazia sentir aos que d’Ele se acercavam que era o Rei. Prudente, grave, reflexivo. Era dominadora a sua paixão pelos livros. O estudo e as investigações históricas, por vezes o levavam ao esgotamento, com grave prejuízo da sua precária saúde. Comedido, moderado, adorando a paz, a tranquilidade, a aplicação. Trabalhava sempre, sem descanso, quase freneticamente’, retratou, a el-Rei Dom Manuel II, Costa Cabral in ‘Memórias II’.
 
De facto, SM El-Rei Dom Manuel II de Portugal era Senhor de um temperamento calmo e conciliador, sem deixar de evidenciar espírito crítico, pelo que foi um modelo de monarca constitucional, respeitador zeloso da separação de poderes e das liberdades políticas e públicas que proporcionou um período de Acalmação política. Acarinhado pelo Povo, era amiúde alvo de demonstrações que o confirmavam, mas o Seu Reinado não resistiu à sedição dos batalhões infiltrados pela carbonária, às bombas dos anarquistas, aos interesses dos pedreiros-livres da Maçonaria e do seu braço armado, juntamente com a inépcia dos políticos e das chefias militares e com a complacência do “olhar convenientemente para o lado” de alguns áulicos e políticos monárquicos, que por acção ou omissão ‘ajudaram’ o coup de 5 de Outubro a implantar o novo regime republicano.
 
No exílio, em Inglaterra, foi então tempo de, sem deixar de se interessar pela política, aprimorar os seus dotes culturais. Elevou a sua perícia como organista à perfeição e, mais importante, tornou-se um erudito de mérito reconhecido.
 
Dom Manuel II escreveu então um tratado sobre literatura medieval e do Renascimento em Portugal ao mesmo tempo que, mesmo no exílio, não se eximiu das funções para as quais tinha sido preparado. Assim, com o dealbar da 1.ª Grande Guerra, o Monarca exilado, em Inglaterra, colocou-se à disposição dos aliados para servir como melhor pudesse. Inicialmente, tomou-o o desapontamento quando o colocaram como oficial da Cruz Vermelha Britânica, mas o empenho que mostrou no decorrer da guerra, cooperando em conferências e na recolha de fundos, visitando hospitais e mesmo os feridos na frente, acabou por ser-Lhe muito gratificante. Porém, o seu zelo nem sempre foi penhorado, e certa vez lamentou-se disso: “A sala de operações do Hospital Português, em Paris, durante a guerra, foi montada por mim. Sabe o que puseram na placa da fundação? ‘De um português de Londres’.” El-Rei criou, ainda, o departamento ortopédico do hospital de Sheperds Bush, que por perseverança do Monarca continuou a funcionar até 1925, dando assistência aos mutilados de guerra. Uma prova de reconhecimento dos ingleses para D. Manuel II de Portugal foi quando o Rei britânico Jorge V – primo do Monarca português pelos laços da Casa de Saxe-Coburgo e Gotha – tê-Lo convidado e à Rainha Augusta Vitória a ficar a seu lado na tribuna de honra durante o Desfile da Vitória, em 1919.
 
Nos tempos que se seguiram, à I.ª Grande Guerra, e com mais tempo livre, embora sem negligenciar a proximidade com as estruturas monárquicas, El-Rei passou a dedicar-se mais aos estudos, seguindo assim a tradição que já vinha de seu pai, de seu avô e de seu bisavô.
 
Primitivamente projectou elaborar uma biografia sobre D. Manuel I, que pensava ter sido injustamente examinado pelos historiógrafos da época. Foi aí que começou a Sua senda: primeiro, em 1919, agenciou os labores do bibliófilo Maurice Ettinghausen, que se encarregou de lhe encontrar os livros antigos de que precisava, tarefa facilitada pelo desmembramento de incontáveis bibliotecas privadas que ocorrera em Portugal depois do estabelecimento da república. Mas antes de começar a biografia do Primeiro dos Reis com nome homónimo, Ettinghausen aconselha Sua Majestade a anteceder a obra com a catalogação de todos os livros antigos que possuía na sua biblioteca. O último Rei de Portugal faz a elaboração da lista, mas também um prévio estudo das mesmas e acometesse-lhe também o ensejo de ampliar essa biblioteca. Começa então a compra arrebatada de grandes e raras obras da literatura portuguesa.
 
Em 1926, já o real objectivo havia sido redireccionado. O real pesquisador tornou-se um investigador, renunciando à ideia da biografia para se concentrar na enumeração, definição e explicação dos clássicos e livros raros e antigos da sua biblioteca. Não era já um rol elementar dos livros de um coleccionador, mas uma obra erudita, pois o autor tratou de escrever e descrever as pretéritas glórias do Portugal dos antigos Reis, narrando cada volume não só bibliograficamente, mas documentando-o com um ensaio sobre cada autor e cada tema do livro, inscrevendo-o no seu âmbito histórico. A explicação e interpretação de cada obra pelo Rei era estribada com fontes, provas e documentos conferindo-lhe rigor e carácter científico.
 
Sua Majestade Fidelíssima El-Rei Dom Manuel II de Portugal, o derradeiro dos Reis da Nação valente e imortal, torna-se então um ilustre Erudito, pois produz a mais admirável e brilhante obra de bibliografia portuguesa de sempre.
 
Em três densos volumes (o terceiro inacabado) Livros Antigos Portugueses, ao resultado final, só pode ser apontado, não a crítica, mas o elogio de ser ferido pela dilecção e amor pátrios, bem notórios no encómio da História de 771 anos da Monarquia Portuguesa e do Reino de Portugal.
 
El-Rei publica os dois primeiros volumes, que, naturalmente, sendo uma obra de objecto específico, tinha uma edição e tiragem limitada e era adquirida por subscrição. Cada volume encontrava-se ricamente ilustrado por fac-similis das obras analisadas e dissertadas e eram edição bilingue pois a obra era redigida em português e em inglês (recorde-se que Dom Manuel II foi instruído desde muito cedo nas línguas clássicas e modernas, falando e escrevendo fluentemente também em inglês, francês, alemão, latim e grego antigo).
 
O primeiro volume da obra “Livros Antigos Portuguezes 1489-1600, da Bibliotheca de Sua Magestade Fidelíssima Descriptos por S. M. El-Rey D. Manuel em Três volumes” foi publicado em 1929. Como havia sido o primeiro subscritor da obra, o primeiro exemplar foi entregue em mão ao primo, o Rei britânico George V, tendo-se D. Manuel II deslocado ao Castelo de Windsor para esse efeito. O Volume aborda dois manuscritos, cinco incunábulos e trinta e três livros impressos em Portugal até 1539.
 
A obra colheu óptimas críticas dos especialistas o que estimulou El-Rei a empenhar-se prontamente na elaboração do segundo Volume, que abrangeu o período de 1540 a 1569.
 
Foi uma tarefa estafante: o trabalho de redigir o Volume II tornou-se o mote de vida do incansável Rei, com as necessárias e correspondentes consequências para a Sua saúde. Todavia, excepcionando as sobrecapas, o segundo Volume estava pronto em 1932.
 
El-Rei despede-se de Sua Augusta Mãe a Rainha Dona Amélia – que regressa a França -, sorridente, mas cansado. Assiste ao Torneio de ténis de Wimbledon, desporto que pratica com mestria e que segue atentamente. Consulta um médico que lhe diagnostica nada de grave. Recolhe-se para Fulwell Park, a casa em Twickenham, nos arredores de Londres, que serve de residência durante cerca de 20 anos ao Rei no exílio. Escusa-se a assistir ao casamento da filha do seu imediato António Pereira que decorre nos jardins do monarca. O Rei sente-se muito mal e falece, sozinho no seu quarto, inesperadamente, asfixiado por um edema da glote. Pouco depois, é descoberto por Dona Augusta Victoria que chama o médico, mas nada havia a fazer, pois El-Rei já partira para a Casa do Senhor.
O terceiro Volume que Dom Manuel II deixara incompleto foi acabado pela sua assistente bibliotecária, Margery Withers e foi publicado postumamente, sob sua supervisão. Já não se trata de uma obra erudita, pois o derradeiro volume é apenas uma listagem de obras, sem os ensaios e espírito crítico que engrandeceram os precedentes, e que outorgaram a El-Rei Dom Manuel II, a justa fama de historiador e para muitos – como o Professor José Hermano Saraiva num episódio ‘A Alma e a Gente’ – um dos mais eruditos dos Reis portugueses, e sem dúvida o mais ilustrado dos monarcas da época.
 
Foi um Rei Patriota que dedicou a Sua vida à exaltação de Portugal, primeiro como príncipe, depois como Rei e, finalmente, após a golpada republicana, como Rei no exílio dedicando-Se à codificação e estudo da literatura portuguesa, que lhe granjeou a maior das Famas, um Rei que já não cingia a Coroa de Portugal, mas que foi, com a Sua obra, coroado com o Laurel enramado de folhas de carvalho – próprio dos Príncipes das Artes.

Miguel Villas-Boas – Plataforma de Cidadania Monárquica
 

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