terça-feira, 10 de janeiro de 2017

EM DIA DE SÃO GONÇALINHO, VIDA E ICONOGRAFIA DE SÃO GONÇALO DE AMARANTE

Foto de Museu de Aveiro.
No que respeita à vida de S. Gonçalo de Amarante as informações exactas de que dispomos são inversamente proporcionais ao culto e aos milagres que se lhe atribuem. Assim sendo seguiremos de perto o que Frei Luís de Sousa1, seu hagiógrafo, nos transmite acerca deste filho de Gonçalo Pereira, nascido cerca 1187, no paço da ilustre e nobre linhagem dos Pereiras, no lugar de Arriconha2, freguesia de Tagilde, próximo de Caldas de Vizela, actualmente no concelho de Guimarães. 
Desde o seu baptismo se manifestaram os desígnios que Deus lhe reservava. Ao ser baptizado na igreja de São Salvador, em Tagilde, o sacerdote entrega o menino nos braços da ama, porém, como diz o cronista, “em vez de buscar os peitos e o leite, que o natural instinto a toda a criatura ensina, ou se queixar com choro da frialdade do banho sagrado, pos os olhos em um crucifixo”3 (…), o que provocou o pasmo geral. 

Após aprender os rudimentos das primeiras letras na casa paterna, e verificando a inclinação que tinha para a virtude, Gonçalo Pereira envia o filho para Braga, onde é acolhido pelo Arcebispo, como se fora seu familiar. “Eram as casas dos Arcebispos naquela idade como Academias”4, ou seja, lugares de estudiosos e letrados que o prepararam “em doutrina para eclesiástico”.5 

Entretanto, “A grande e afervorada continuação com que o Santo meditava os trabalhos de Cristo”, escreve Frei Luís, “veio a criar em sua alma um imenso desejo de ver por seus olhos a terra, que foi tão ditosa, que mereceu gozar sua presença sagrada trinta e três anos.”6 Decide então partir em visita aos lugares santos, levando os olhos em Roma e o coração na Terra Santa, como escreve o cronista.7 Durou esta ausência catorze anos.

Tinha deixado os seus paroquianos ao cuidado de um sobrinho sacerdote, seu parente e criado por si, no qual depositava a maior confiança. Porém, teve o pressentimento da sua possível falta de zelo, o que o levou a regressar a São Paio. Aqui tornaram-se reais os receios que sentira: cansado e desgastado da viagem encontra-o a viver da grossa renda, e tratando-se como príncipe, com muitos criados e mesa esplêndida.8 Além de o não aceitar e não reconhecer como verdadeiro e legítimo pároco, escorraçou-o e, assim, Gonçalo, resignado, abandonou a sua paróquia e foi pregando o Evangelho até às margens do Tâmega, onde edificou uma pequena ermida que dedicou a Nossa Senhora, nela se albergou, saindo a pregar nas imediações e consagrando o tempo que lhe sobrava à oração e à penitência. 

Jejuou uma Quaresma inteira a pão e água e dirigiu sentidas súplicas a Nossa Senhora para que lhe alcançasse do Senhor a graça da salvação, e eis que sendo dia da Ressurreição lhe aparece a Virgem, dizendo-lhe que entrasse em religião regular naquela Ordem em que iniciavam o seu Ofício com a Saudação angélica ou Ave-Maria. Essa Ordem era a dos Pregadores ou Dominicanos.

Um elemento que, quase sempre, aparece associado a S. Gonçalo: uma ponte. É ela um dos seus elementos iconográficos mais significantes pois, após vestir o hábito dominicano, continuava Frei Gonçalo a operar inúmeras maravilhas. Diz-nos agora o Hagiologio de 17099: Continuava São Gonçalo as suas pregações, as mais dellas junto da sua ermida (em Amarante). E vendo que grande parte dos ouvintes viviam da outra banda do rio Tâmega, e que muitos quando vinham buscar o pasto espiritual, ou se viam impedidos das caudelosas correntes do rio, ou chegavam a perecer, … abraçado em incêndios de caridade… determinou fazer lançar uma ponte ao rio.10 A todos parecia ser um feito impossível, mas o Santo lançou mãos à obra e um anjo apareceu a indicar o lugar mais propício, e, contra o esperado, concretiza a sua obra ligando as duas margens. A estrada criada seria um elemento de progresso, pois tornar-se-ia a via mais importante de ligação entre Douro e Minho, com feira franca e grandes privilégios reais e valeu a São Gonçalo o epíteto de segundo fundador de Amarante.

Durante a construção, e segundo o mesmo texto: pelas grandes tormentas, veio a faltar provimento de peixe, em hum dia dos proibidos pela Igreja. Afligiu-se o Santo(…) Recorre à dispensa divina com a chave da oração e descendo à margem do rio fez o sinal da Cruz, começam a acudir cardumes de diferentes peixes, e com tanta ânsia que parece contendiam entre si sobre quais haviam de ser primeiro.11

Não muito tempo após a construção da ponte, e segundo a tradição, Nossa Senhora revelou-lhe o dia da sua morte, a 10 de Janeiro de 1262, para a qual se preparou com a recepção dos Sacramentos da Igreja. O seu venerado corpo, após a celebração das solenes exéquias por sua alma, foi sepultado na ermida que erigira, continuando a efectuar-se muitos milagres, atribuídos à sua intercessão.

Entretanto, em 1400, mais de um século sobre a sua morte, houve uma inundação no rio Tâmega, e temeu-se a ruína da ponte pois um enorme tronco de árvore ameaçava destruí-la. Apareceu entretanto um fradinho, velho, com hábito dominicano, que estendeu o braço e com o bordão encarreirou o tronco para que passasse por um dos arcos, deixando incólume a útil obra. 

Regressou então o velho frade à ermida e, ao ser procurado para lhe agradecerem a ajuda, apenas encontraram o túmulo de S. Gonçalo. É o que representa esta extraordinária pintura de António André, que executa um elaborado programa de enaltecimento dos Santos e beatos dominicanos para o Convento de Jesus, em Aveiro, no qual se procura a glorificação dos Santos dominicanos portugueses (Bartolomeu dos Mártires, Frei Gil, Santa Joana, etc.).
Foram realizados três Processos canónicos em ordem à Beatificação e Canonização de S. Gonçalo, o último dos quais por D. Rodrigo Pinheiro, Bispo do Porto, por comissão do Papa Pio IV, em 1561. A rogo de D. Sebastião, do Arcebispo de Braga, da Ordem dos Pregadores, do Cardeal D. Henrique e da população de Amarante, a sentença de Beatificação foi promulgada a 16 de Setembro de 1561 pelo representante da Sé Apostólica, confirmando-se a concessão de lhe tributar culto público já permitido antes pelo Papa Júlio III, em 1551.

Mais tarde o Papa Clemente X, em 10 de Julho de 1671, estendeu a toda a Ordem de S. Domingos e a todo o reino de Portugal a concessão de honrarem este glorioso Santo, um dos santos mais populares de Norte a Sul do País, com Missa e Ofício litúrgicos próprios. O seu culto espalhou-se pelos domínios ultramarinos de Portugal, chegando à índia e ao Brasil como o confirma um longo e engenhoso sermão do P. António Vieira sobre S. Gonçalo. 

São Gonçalo de Amarante, com os seus atributos mais usuais, representa-se imberbe, tonsurado, com hábito da Ordem de São Domingos, composto de 4 peças, numa harmonia de cores branco e negro: vestido (túnica) com mangas, escapulário, capuz (branco) e uma capa de cor negra. Um cinto de couro, com um rosário pendurado, completa o hábito. É interessante notar que o traje branco tradicional do Papa é usado desde que Pio V, frade dominicano, foi eleito. Completa-o o bordão, livro e uma ponte. Todos estes elementos ligados intrinsecamente à vida e predica deste Santo e constando da sua biografia. 

Em Aveiro, como em Amarante, Guimarães e Lisboa, encontrou Gonçalo de Amarante um terreno fértil de devoção, documentada desde 1464 quando D. João Galvão, Bispo-Conde, procede à dedicação do Mosteiro Domínico de Nossa Senhora de Misericórdia, sendo recebido por aquelas gentes da beira-mar como o “seu” São Gonçalinho, ao qual dedicam um templo de que é o orago, e ao qual versejam os aveirenses que tanto o estimam dizendo: 

S. Gonçalo lá de cima
é das velhas curraleiras 
S. Gonçalo cá de baixo 
é das novas pescadeiras.

É S. Gonçalinho tão milagreiro que não há moléstia, aflição ou penúria para que não se invoque e a que não remedeie.12
1- Frei Luís de Sousa, "Historia de São Domingos Particular do Reino e Conquistas de Portugal", III Parte, Vol. II, 1623
2 - Em Arriconha não falta, desde tempos imemoriais, uma capela dedicada a S. Gonçalo.
3 - Frei Luís de Sousa, "Historia de São Domingos Particular do Reino e Conquistas de Portugal", III Parte, Vol. II, 1623, Porto: Lello e Irmãos, 1977, p.163
4 - Idem, Ibidem
5 - Idem, Ibidem
6 - Idem, p. 165
7 - Idem, p. 166
8 - Idem, p. 167
9 - "Agiologio Dominico, vidas dos Santos, Beatos, Martyres e outras pessoas veneráveis da Ordem dos Pregadores, traduzida e acrescentada pelo Padre Frei Manuel de Lima", Lisboa, 1709
10 - Idem
11 - Ibidem
12 - "Agiologio Dominico, vidas dos Santos, Beatos, Martyres e outras pessoas veneráveis da Ordem dos Pregadores, traduzida e acrescentada pelo Padre Frei Manuel de Lima", Lisboa, 1709, p. 96

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