quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Negros e portugueses: nós no século XVI

Foto de Nova Portugalidade.



Os mestres-músicos negros de D. Manuel



No Museu Nacional de Arte Antiga, de pintor português desconhecido e datado do primeiro quartel do século XVI, está patente ao público um políptico de cinco pinturas a que se convencionou chamar Retábulo de Santa Auta, anteriormente exposto no Convento da Madre de Deus para ilustrar passagens da vida daquela santa cujas relíquias ali foram depositadas em 1517. 

Numa das pinturas, alusiva ao Casamento de Santa Úrsula e do Príncipe Conan, a nossa atenção é desviada dos nubentes para um sexteto de instrumentos de sopro inteiramente composto por músicos negros, um dos quais toca trombone. No início do século XVI, a pintura sacra destinava habitualmente aos anjos a função de executar música, dado que a presença de Deus sempre se terá manifestado acompanhada de acordes celestiais.

Com excepção de um caso singular na Inglaterra de Henrique VII e Henrique VIII, onde foi célebre um trompetista negro chamado John Blanke - caso raro potenciado pelo exotismo - tudo indica que foram os Portugueses os primeiros a valorizar o talento e virtuosismo de instrumentistas africanos, usando-os como músicos da corte. Porém, o importante que nos importa reter neste particular é o facto de o negro aqui surgir como substituto dos anjos e, como homens, se mostrarem dignos de executarem peças musicais para um importante evento da corte. Não se trata, bem entendido, de trabalhadores braçais - carregadores, caiadores - ou até mesmo de lacaios e vendedores, mas de jovens conhecedores do reportório sacro que requeria anos de estudo e prática.

Se bem que no Renascimento era desaconselhado aos nobres aprender a tocar instrumentos do sopro - aos nobres e pessoas de elevada condição aconselhava-se a aprendizagem de instrumentos de cordas - a valorização artística dos negros e sua escolha face a concorrentes francos, italianos e tudescos assinala um importante evento civilizacional que deve ser lido como o reconhecimento de qualidades criadoras. Caso os instrumentistas fossem negros forros - ou seja, libertos - estes tinham direito a moradia,aposentadoria e vestiaria (casa, comida, trajo), assim como ao pagamento de 3 a 5.000 reais por ano, colocando-os em termos de rendimento numa "classe média antiga" equiparada aos mestres de ofício.

Nos reinados de D. Manuel I, D. João III e D. Sebastião, foi marcante a preocupação em enviar músicos para o Ultramar, ou ali formar jovens instrumentistas destinados a animar festas profanas e religiosas, animadores das festividades das casas dos senhores e governadores em terras do Brasil e do Oriente, ou ainda como elementos de destaque na corte católica do Manicongo, o Rei do Congo, aliado de Portugal.

MCB


Nova Portugalidade



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