quarta-feira, 4 de novembro de 2015

UM PRESIDENTE PARA QUE?



Para que serve o Presidente da República? Por que razão prescreve a Constituição que ele seja "eleito por sufrágio universal, directo e secreto"? Que propósitos ou receios terão levado os deputados à Assembleia Constituinte, em 1976, a configurar o nosso sistema político segundo um modelo "semi-presidencialista"?

Estas questões assumiram, de súbito, uma premente actualidade. A declaração presidencial da semana passada, quer pela opção que assume quer pelos argumentos que invoca, remete-nos, inelutavelmente, para as questões fundacionais da II República - inaugurada pela Revolução de Abril de 1974 - e suscita contradições insanáveis face ao teor da Constituição que dois anos mais tarde iria qualificar o regime político democrático que nos rege.

Em primeiro lugar, a "indigitação" presidencial do líder do PSD para chefiar o Governo da coligação de Direita é uma decisão que envolve perigosos equívocos. Com efeito, nenhuma razão justifica que a "proposta" de uma solução de Governo suportada por uma minoria parlamentar constitua uma etapa necessária no processo constitucional de formação do novo Governo. Todavia, foi essa a solução preferida pelo Presidente da República, apesar de lhe ter sido previamente comunicado, pelos respectivos partidos, que havia uma alternativa política de Governo que merecia o apoio da maioria dos deputados. No mínimo, teremos de considerar esta opção do Presidente como precipitada e particularmente censurável, da parte de quem marcou as eleições para esta data, sabendo de antemão que assim prejudicava não só o processo e os prazos para a aprovação do Orçamento Geral do Estado, mas também os compromissos assumidos, nesta matéria, perante a Comissão Europeia!

Mais graves, porém, são as justificações invocadas pelo Presidente da República para proceder por forma tão fútil e caprichosa. Não só porque ignora que a Constituição que jurou o obriga a "ter em conta" os resultados eleitorais e aquilo que os partidos políticos oportunamente lhe transmitiram mas, sobretudo, porque as suas considerações prolixas sobre a natureza e o papel de certos partidos com representação parlamentar não excluem liminarmente a possibilidade de interpretações frontalmente incompatíveis com a Constituição e violadoras dos mais elementares princípios democráticos. Nem os cidadãos eleitores nem os seus representantes eleitos podem ser divididos por classes ou hierarquizados por quaisquer critérios, ao sabor dos gostos e preferências do Presidente. Não há votos de protesto, por oposição a votos para governar. Não há votos de primeira e votos de segunda. Não há partidos fadados para a governação e partidos banidos das responsabilidades de Governo.

O Presidente terá de explicar em breve o que pretendia efectivamente dizer. Porque não lhe compete discutir a natureza nem a legitimidade das escolhas do povo soberano mas apenas submeter ao Parlamento uma solução de Governo estável e duradoura, que corresponda à vontade democrática expressa nos resultados eleitorais. Ainda mais grave, contudo, é que das suas palavras se possa inferir uma disposição para deixar o país entregue a um Governo com meros poderes de gestão, caso não lhe agradem as soluções que lhe vierem a propor se, como já lhe foi anunciado, uma maioria de Esquerda se afirmar disposta a governar, em harmonia com a Constituição, com as nossas responsabilidades internacionais e os compromisso com a Europa. Porque isso implicaria a violação da sua responsabilidade nuclear, única justificação da sua eleição por sufrágio universal e dos poderes irrenunciáveis que a Constituição lhe confia no processo de formação do Governo, na transição regular entre mandatos legislativos e, particularmente, em contextos de grave crise política. O Presidente não pode tornar-se no principal fautor de uma crise, quando precisamente lhe compete, até em situações extremas, zelar pelo "regular funcionamento das instituições democráticas".

A invocação do fantasma do prolongamento em funções de um Governo precário e diminuído, por força da rejeição do seu programa na Assembleia da República - que implica a sua automática demissão! - apenas serve para explorar o medo e a incerteza, num país fragilizado e empobrecido, em nome da sobrevivência de uma Direita que entrou em pânico perante a expectativa de, em breve, deixar o poder.


http://www.jn.pt/opiniao/default.aspx?content_id=4860270 

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