Miguel Mattos Chaves

No próximo dia 23 de Junho, os britânicos votarão em referendo a permanência (ou não) do Reino Unido na União Europeia como Estado-membro de pleno direito. Em causa está, mais uma vez, o modelo federativo que alguns dirigentes europeus têm vindo a impor, com evidente perda de soberania para as Nações da Europa.

Porque vai o Reino Unido realizar um referendo sobre se fica ou sai da União Europeia? Dentro do espírito de informar com rigor os leitores, comecemos por observar os antecedentes e os factos da posição deste país face à Comunidade Económica Europeia (CEE), em primeiro lugar, face à Comunidade Europeia (CE), em segundo lugar, e face à União Europeia (EU), por último.

Verá o leitor, com alguma facilidade, a história real e os factos mais relevantes, o que lhe possibilitará uma melhor compreensão do que está em causa. Comecemos então pelo princípio.

No pós-guerra, os países europeus ocidentais reuniram-se na O.E.C.E (Organização Europeia para a Cooperação Económica). Fizeram parte da OECE desde o início, como seus membros fundadores, a Áustria, a Bélgica, a Dinamarca, a França, o Reino Unido, a Grécia, a Irlanda, a Islândia, a Itália, o Luxemburgo, a Noruega, os Países Baixos, Portugal, a Suécia, a Suíça e a Turquia, aos quais se juntou a República Federal Alemã, quando foi constituída.

Esta organização foi substituída em 1960 pela O.C.D.E. (Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico), que actualmente ainda existe e à qual aderiram os Estados Unidos e o Canadá deixando, deste modo, de ser uma organização de âmbito regional, para passar a ser uma organização de âmbito mundial.

No seio desta organização logo se produziram divergências entre os vários países sobre como manter a paz no continente, e sobre a forma de organizar a Europa do pós-guerra para fazer face à ameaça soviética, então existente.

Em termos genéricos, formaram-se dois blocos:
De um lado, o bloco liderado pela França, que propôs a fundação de uma comunidade que adoptasse uma Pauta Aduaneira Comum e a realização, a prazo, de um Mercado Comum, a que aderiram a Bélgica, a Holanda, o Luxemburgo, a Alemanha e a Itália e que levou à formação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), em primeiro lugar, à constituição da Comunidade Económica Europeia (CEE) e à Comunidade Europeia de Energia Atómica (CEEA), em segundo lugar.

Do outro lado, um conjunto de países liderados pelo Reino Unido, que discordava em absoluto dessas premissas e pretendia construir uma comunidade de países que construíssem um espaço de livre troca comercial, ou livre comércio. Tal conjunto de países formou a EFTA/AECL (Associação Europeia de Comércio Livre), em que não haveria qualquer transferência de soberania por parte dos países integrantes da mesma. Os membros fundadores foram o Reino Unido, a Áustria, a Dinamarca, Noruega, Suécia, Suíça e Portugal.
A proposta de Churchill
Na verdade, o Reino Unido desde o final da 2ª guerra mostrou-se interessado numa união europeia, mas com um modelo diferente do preconizado pelos outros países do bloco ocidental, então apenas agrupados na OECE. Começou por advogar, pela voz do seu primeiro-ministro Winston Churchill, em Zurique, a construção dos “Estados Unidos da Europa” – o Modelo Federal. O seu europeísmo era, sobretudo, uma reacção contra a União Soviética e era, na sua opinião, o caminho que a Europa deveria seguir para fazer face à ameaça soviética.

Mas, curiosamente, nessa arquitectura só participariam os países do Continente. O Reino Unido ficaria de fora, segundo também afirmou na mesma altura. Para Churchill, como para muitos ingleses, a Europa era, e é, o Continente. As Ilhas Britânicas são uma coisa diferente. Se analisarmos melhor o que foi argumentado pela parte britânica encontraremos razões válidas, se vistas à luz do quadro da época em que então se vivia.

Um dos argumentos não explícitos tinha a ver com o carácter e a história recente do país. Os ingleses foram a potência dominante do Sistema Internacional nos séculos XVIII e XIX e até à guerra 1914/1918. Eram detentores de um Império vastíssimo, que abrangia os cinco continentes, e por isso não viam necessidade de se associarem aos “continentais” em organizações em que não fossem eles o factor determinante.

As suas relações comerciais e políticas desenvolviam-se, principalmente, num espaço criado por eles – o Commonwealth – em que pontificavam e o qual não queriam partilhar com outros. Londres, por causa do seu Império, não queria uma União Aduaneira, e portanto a ela não aderiu na altura e empenhou-se, pelo contrário, em bater-se contra ela. Por outro lado, a sua aliança preferencial continuava a ser com a sua antiga colónia, os Estados Unidos da América, potência em crescente afirmação internacional, na altura.

Com a sua individualidade muito marcada, os britânicos não queriam delegar poderes de decisão nacionais em organismos comuns. Face à constituição do bloco dos seis, procuraram assim encontrar uma alternativa. Pretendiam, sim, a constituição de uma Zona de Comércio Livre que consiste num acordo entre vários países para abolirem os direitos aduaneiros entre si, para os seus produtos. Como não há união aduaneira, colocava-se o problema de saber o que eram produtos originários de cada Estado membro da Zona. Era o denominado problema da origem, mas que foi ultrapassado.

Estava assim instalada e visível a cisão entre os países membro da OECE.

A EFTA tinha como objectivos o Livre Comércio dos produtos industriais e a eliminação progressiva dos direitos aduaneiros entre os países do bloco. Era uma organização de cooperação, sem órgãos supranacionais, e onde as decisões eram tomadas por unanimidade. Teve adesões posteriores, como membros associados, a Finlândia (em 1961) e a Islândia (em 1970).
A mudança de posição
O Reino Unido foi convidado, desde o início, a participar e a integrar as Comunidades nascentes da década de 1950 – aquelas que hoje se designam por “Comunidades Originais”. Não o quis fazer pelas razões já explicadas. Mas face ao carácter intergovernamental da CEE (ao contrário da CECA, que tinha um cariz marcadamente federal), ao sucesso visível da Comunidade Económica Europeia e aos efeitos no crescimento económico dos Seis, resolveu mudar a sua posição inicial de desconfiança.

Contribuiu, também, para esta mudança de atitude a perda de algumas das suas colónias e alguma dificuldade crescente, na altura, no seu relacionamento com os EUA. Na verdade, os Estados Unidos tinham começado a achar que o Reino Unido já não era o seu parceiro mais importante. A juntar a tudo isto, sobreveio uma crise económica.

Todas estas razões concorreram para incentivar Londres a pedir a adesão às Comunidades, o que aconteceu, pela primeira vez, em 31 de Julho de 1961. Mas o Reino Unido queria garantias adicionais para os produtos oriundos da Commonwealth. Esta excepção às regras do bloco dos seis foi recusada pelos franceses.

O General De Gaulle, então Presidente da República Francesa, vetou em Janeiro de 1963 a entrada do Reino Unido na CEE. De Gaulle tinha uma posição sustentada, de carácter político, contra a Grã-Bretanha. Achava ele que esta não era verdadeiramente uma potência europeia: era um aliado fiel dos Estados Unidos e o seu braço na Europa, pelo que não queria o Reino Unido numa comunidade europeia. Em 1967, a , novamente pela voz do General De Gaulle, negou mais uma vez a possibilidade de este país aderir às comunidades.

Até que em 1969, na Cimeira da CEE em Haia, foi definida uma vontade política de alargar a Comunidade a novos países, determinada por uma mudança de orientação da França, então presidida por Georges Pompidou. Como consequência deste objectivo, concretizar-se-iam em 22 de Janeiro de 1972 os Tratados de Adesão do Reino Unido, da Irlanda e da Dinamarca. Esta nova abertura teve várias causas, entre as quais o desejo da França de encontrar um parceiro nuclear, não só no Conselho de Segurança, mas também na Comunidade Económica Europeia, a fim de dotar esta de uma voz mais forte no panorama internacional.

Assim, ao longo do tempo, o Reino Unido tem dado vários sinais de não querer aderir a um projecto federal, por considerá-lo contrário aos seus legítimos objectivos.

Vejamos os seis principais sinais da posição britânica:

O 1º sinal de que nunca aceitaria o caminho do Federalismo foi a construção da E.F.T.A.

O 2º sinal foi a reacção de Margaret Thatcher exigindo uma menor contribuição dos ingleses para o orçamento da Comunidade, a denominada “Crise do Orçamento Comunitário”.

O 3º sinal foi não querer aderir à UEM (União Económica e Monetária) e ao Euro;

O 4º sinal foi a sua não adesão plena ao Espaço Schengen. Na verdade, o Reino Unido mantém restrições e o denominado “opting-out” sobre este tratado.

O 5º sinal refere-se às cláusulas de exclusão, isto é, de não aplicação, que o Reino Unido tem imposto aos vários tratados – o que, por exemplo, implica que não se aplicam a este país boa parte das disposições dos vários tratados da comunidade, nomeadamente as do Tratado de Lisboa.

Por fim, o 6º sinal, este o mais recente: o anúncio da realização de um referendo, a organizar até 2017, em que serão colocadas duas opções aos cidadãos do Reino Unido: 1ª, “Remain a member of the European Union” (permanecer como membro da União Europeia); 2ª, “Leave the European Union” (abandonar a União Europeia).

A data do referendo foi entretanto fixada para o próximo dia 23 de Junho de 2016, uma quinta-feira.
Exigências britânicas
David Cameron, primeiro-ministro do Reino Unido, tem vindo a endurecer as suas posições face à União Europeia, desde o início do seu mandato. Fá-lo obviamente na defesa dos interesses do Reino Unido que governa, tal como outros líderes europeus o têm feito, pois estes são eleitos pelos seus povos, pelos seus cidadãos, para o fazer e têm isto muito claro.

Dentro desta linha de pensamento, Cameron colocou em cima da mesa de negociações com a Comissão Europeia e com o Conselho Europeu oito exigências, das quais obteve os seguintes resultados:
  1. Filhos de imigrantes – introdução de uma limitação significativa nos benefícios recebidos pelos filhos dos imigrantes;
  2. Imigrantes – estabelecimento de limites aos benefícios e regalias concedidos aos imigrantes oriundos da União Europeia, durante os primeiros quatro anos de trabalho no país;
  3. Leis Comunitárias – introdução de uma regra que estipula que se 55% dos Parlamentos Nacionais dos Estados-membros recusarem uma Legislação Comunitária, ela não entrará em vigor.
  4. Competitividade – apelo a que as instituições europeias desenvolvam todos os esforços no sentido de implementar e fortalecer o mercado interno e de dar passos concretos no sentido de uma melhor regulação do mesmo;
  5. City – não aplicação ao Centro Financeiro Londrino (a “City”) de regras da Zona Euro, excepto quando autorizadas pelo Governo londrino;
  6. Moeda – manutenção da Libra Esterlina como moeda do Reino Unido e como moeda utilizada nas trocas com a Eurozona. Devolução/reembolso de qualquer quantia gasta pelo Reino Unido que tenha sido aplicada, pela União Europeia, no resgate de economias soberanas da Zona Euro;
  7. Limites à Livre Circulação – possibilidade de o Reino Unido negar a autorização automática de liberdade de circulação a nacionais de Estados Terceiros à União Europeia de forma a impedir os “casamentos de conveniência”. Conseguiu igualmente poderes para o Governo de Londres poder negar a entrada a pessoas sobre as quais haja suspeitas de serem um perigo para a segurança do país, mesmo que se não reconheçam convicções nesse sentido às pessoas que nele queiram entrar.
  8. Soberania – compromisso de que o Reino Unido não fará parte de qualquer estreitamento ou federalização da União (“UK will not be part of an ‘ever closer union’ with other EU member States”), regra que deverá ser incorporada em qualquer Tratado da União Europeia.
E os outros povos?
Com este acordo entre o Reino Unido e a União Europeia, David Cameron dispôs-se, em troca, a defender junto dos britânicos a manutenção do país na União Europeia.

Com estas regras e excepções aos Tratados Europeus, o primeiro-ministro espera conseguir da população britânica a escolha da primeira opção prevista no referendo: “Remain a member of the European Union”.

Posto isto, torna-se claro que o modelo defendido por David Cameron (na linha dos seus antecessores) é o modelo da União da Europa das Nações Soberanas – Modelo Intergovernamental – sem transferências de soberania. Na sua opinião e acção, os britânicos têm consistentemente, e coerentemente, defendido que deve ser este o rumo da União Europeia.

Também coerentemente continuam a dizer não ao Modelo Federal que tem sido imposto aos outros países, o qual implica transferências de soberania em favor da União. Assim, e face à actuação de alguns dirigentes europeus, reafirmam agora claramente que não estão de acordo com o modelo que tem sido progressivamente imposto nas costas das populações dos vários países e que continuarão a recusar-se a adoptá-lo.

Nada de novo, portanto, nesta matéria. O que surpreende é que os povos que estão acordo com os britânicos não exijam referendos sobre a matéria aos seus respectivos Governos, como é o caso do povo de Portugal.

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