As espantosas vitórias militares alcançadas pelos soldados portugueses contra multidões de inimigos apareciam aos olhos dos naturais asiáticos como a prova mais evidente de que o deus dos europeus era mais poderoso que os seus antigos deuses e facilitavam as conversões; por seu turno, a cristianização dos nativos pelos religiosos fornecia aos soldados milhares de auxiliares dedicadíssimos que lhes permitiam duplicar ou triplicar, a baixo custo, os reduzidos efectivos vindos da metrópole. Em contrapartida, as injustiças, as desonestidades e por vezes mesmo as crueldades praticadas pelos soldados eram um péssimo exemplo da aplicação prática da doutrina cristã que comprometia a evangelização. Por outro lado, a obrigação moral de proteger as comunidades cristãs obrigava os soldados a envolver-se em numerosas guerras que não tinham qualquer interesse sob o ponto de vista político ou económico. A verdade é que não era fácil harmonizar e coordenar no tempo e no espaço acções tão díspares como eram as de Comerciar, Evangelizar e Subjugar.
Nos últimos dias de Julho do ano de 1587, chegou a Malaca o já referido num artigo anterior grande Dom Paulo de Lima, com três galeões da sua armada.
Dirigiu-se para Jor, onde chegou a 6 de Agosto. Reunido o conselho, foi decidido que o assalto à cidade teria logo no dia 15 de Agosto por ser dia da Nossa Senhora.
Ao que parece, nem sequer foi considerada a linha de acção, muito mais segura, de obrigar o inimigo à rendição por intermédio de um bloqueio naval prolongado, certamente porque este tipo de vitória ser muito mais demorada e incompatível com o brio militar dos bravos fidalgos lusos.
A 13 de Agosto foi armado um altar em terra, e dita missa, a que assistiam Dom Paulo de Lima, acompanhado por todos os fidalgos e muitos soldados. O dia 14 foi consumido em exercícios espirituais e preparativos de toda a ordem.
As tropas portuguesas, num total de cerca de seiscentos homens, iam divididas em três «bandeiras»: a que constituía a vanguarda, formada por cerca de duzentos soldados, era comandada por Dom António de Noronha; a que constituía o corpo principal, formada por cerca de duzentos e cinquenta soldados, era comandada por Dom Paulo de Lima; a que constituía a rectaguarda, formada por cerca de cento e cinquenta soldados, era comandada por Mateus Pereira de Sampaio.
O sol já ia alto, o calor começava a apertar, e os nossos soldados, principalmente os fidalgos, tinham grande dificuldade em marchar, devido não só ao peso das armaduras e dos capacetes como também, e muito principalmente, às temperaturas elevadíssimas que estes atingiam.
Tinham os soldados conseguido abrir uma passagem através da estacada e, depois de um ferocíssimo combate, começaram a entrar na cidade.
Mas o avanço tornou-se muito lento porque a rua estava atulhada de inimigos e da muralha que lhe ficava sobranceira choviam sobre os nossos os pelouros das espingardas, de que as tropas de Jor dispunham em número impressionante, e as flechas envenenadas.
Mesmo que o quisessem fazer, os soldados inimigos que enfrentavam os nossos na rua não podiam recuar devido à massa de gente que tinham atrás de si.
Para prosseguir, era necessário aos portugueses matar à lança e à espada ou a tiro de arcabuz um a um os adversários que tinham pela frente e passar por cima dos seus corpos.
O calor era cada vez mais intenso e as armaduras e os capacetes queimavam. Mas, se não fossem eles, os portugueses teriam ficado todos mortos. Os fidalgos que iam na testa da coluna, eram quem suportava todo o peso da batalha.
Apesar de tudo, a estreiteza da rua favorecia os nossos, porque a frente de combate impedia o inimigo de tirar partido da sua avassaladora superioridade numérica, que era da ordem de vinte para um.
Enquanto a nossa coluna, qual serpente de ferro, continuava a deslizar muito lentamente para o interior da cidade, os navios de alto bordo continuavam a bater furiosamente as fortificações inimigas com a sua artilharia. Mas o efeito deste bombardeamento era mais de natureza psicológica.
Bem abrigados dos pelouros vindos do mar, os soldados de Jor que estavam nos baluartes e na muralha sobranceiros à rua continuavam a disparar incessantemente as suas espingardas e os seus arcos sobre a coluna portuguesa, que tinham, praticamente imobilizada, a seus pés.
Debaixo de um dilúvio de tiros de espingarda e de flechas e acossados por centenas de lanças e de terçados manejados por braços frescos, os soldados da bandeira de Dom António caíam como tordos, apesar de estarem a ser constantemente reforçados pela gente da bandeira de Dom Paulo de Lima, que continuava nas suas costas.
O combate foi pavoroso!
E, num instante, o pânico espalhou-se entre o inimigo e as suas hostes desagregaram-se. Montados nos seus elefantes e levando consigo as mulheres e os tesouros, o rei de Jor e os reis seus aliados, que o tinham vindo auxiliar, fugiram espavoridos, acompanhados por um tropel de soldados sem armas e da população da cidade que dava gritos lancinantes.
Mal podendo acreditar no que os seus olhos viam, os soldados portugueses arrancavam as armaduras e os capacetes que os assavam, bebiam toda a água que podiam apanhar e sentavam-se ou deitavam-se pelo chão, exaustos.
Extinto o fogo, Dom Paulo de Lima entregou a cidade durante seis dias ao saque dos soldados que, apesar do muito que tinha ardido, ainda acharam por entre os escombros o suficiente para se sentirem compensados do transe aflictivo por que tinham passado.
Os despojos de natureza militar foram dos maiores que os Portugueses alcançaram nas guerras do Oriente: mais de mil canhões de bronze, entre eles alguns de grosso calibre, mil e quinhentas espingardas, a maior parte delas com as coronhas consumidas pelo fogo e um nunca acabar de lanças, espadas e punhais. Nos esteiros a norte e a sul da cidade foram incendiados cerca de DOIS MIL NAVIOS, entre naus, galés, juncos, galeotas, fustas, lancharas, bantins, champanas e outros de menor porte!
O rei de Jor perdeu quatro mil soldados que lhe foram mortos em combate pelos portugueses e outros três mil que lhe foram mortos durante a retirada pelos javos que levava consigo. Dos nossos morreram oitenta.
Tendo deixado a cidade e a maior parte da armada inimiga reduzida a cinzas, Dom Paulo de Lima regressou com todos os navios a Malaca, onde chegou a 5 de Setembro.
Ali foi recebido em triunfo à maneira da Roma antiga, atravessando a cidade com uma coroa de louros na cabeça, seguido pelos capitães e soldados armados como quando tinham desembarcado em Jor de bandeiras desfraldadas, tocando trombetas e tambores, acompanhados de um cortejo de catipvos acorrentados, com as bandeiras inimigas a arrastar pelo chão e chusmas de escravos transportando aos ombros exemplares das armas capturadas. Salvou a artilharia e a arcabuzaria com um estrondo jamais ouvido, repicaram os sinos e cantou-se solene Te Deum. Pasmavam os gentios e exultavam os portugueses, depois dos longos meses de miséria por que tinham passado. Finalmente, Malaca podia respirar tranquila e olhar com confiança o futuro. Os dois eternos inimigos da cidade, o Achém pela mão de Deus e o Jor pela força do braço português, pareciam liquidados.
(Batalhas e combates da marinha portuguesa volume IV, Saturnino Monteiro)
Ricardo da Silva
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