Nenhum insulto pode legitimar um crime contra a liberdade e os direitos humanos, por muito censurável que seja a blasfémia, do ponto de vista ético, pelo seu carácter essencialmente ofensivo.
Os atentados perpetrados esta semana, em Paris, contra o Charlie Hebdo e não só, deixaram a França e o mundo inteiro em estado de choque. Com razão, porque todos os cidadãos, quaisquer que sejam as suas crenças ou a sua ideologia política, são, para além dos vários mortos que há a lamentar, vítimas do terrorismo.
Seria abjecto justificar estes crimes à conta da situação económica ou da recorrente irreverência daquela publicação para com o profeta do Islão. Legitimar um homicídio é, em termos jurídicos e morais, ser seu cúmplice. Os crimes não se justificam, nem se explicam: condenam-se. Não se dialoga com a sem-razão de um atentado.
O primeiro destes ataques terroristas foi um acto de retaliação a supostas blasfémias publicadas nas páginas do Charlie Hebdo. Por este motivo, há quem pretenda, senão justificar os doze nefandos assassinatos, pelo menos atenuar a responsabilidade dos criminosos que, neste sentido, teriam agido ao abrigo de uma legítima defesa dos seus interesses religiosos e culturais. Nada mais falso do que esta suposição que, de algum modo, condescende com o terrorismo. Uma sociedade que, de alguma forma, compreende qualquer crime contra a liberdade e os direitos humanos é uma sociedade refém do medo.
Mas, não é verdade que, nas páginas desse semanário, foram publicados textos e ‘cartoons’ pouco abonatórios para os seguidores de Maomé? Aliás, as suas peças eram também muito críticas de outras religiões, nomeadamente a cristã, cujos fiéis, pela mesma razão, poder-se-iam sentir igualmente ofendidos na sua fé. Sim, é certo, mas mais vale a liberdade de pensamento e de expressão, do que a censura ou a repressão. Não se combate o abuso da liberdade com a sua supressão.
Quer isto dizer que a sociedade democrática é impotente em relação às ofensas de natureza religiosa? De modo nenhum, mas a resposta a dar não deve ser outra do que a institucional, ou seja, a que decorre do normal funcionamento das instituições. Se alguém injuria uma pessoa, a vítima tem direito a recorrer aos tribunais, para defender a sua honra e o seu bom nome. Todas as individualidades físicas e entidades morais têm direito a que a sua dignidade seja respeitada publicamente.
Um ‘cartoon’ alusivo a um líder religioso pode não ser ofensivo e, em geral, é até um salutar exercício de humor. Mas também os há que são, objectivamente, caluniosos. Não compete ao poder executivo, nem às comunidades religiosas, determinar, numa sociedade plural e laica, o que seja ou não ofensivo, porque essa é uma atribuição exclusiva do poder judicial. Se é gratuitamente posta em causa a dignidade de pessoas e instituições, sejam ou não religiosas, qualquer cidadão ou entidade tem o direito fundamental de recorrer à justiça.
Todos os temas religiosos podem e devem ser discutidos em liberdade e ninguém deve ser obrigado a professar nenhum credo. Em caso algum deve haver lugar para o delito de opinião, nem qualquer censura ou limite à liberdade de pensamento e de expressão.
Mas o exercício livre e responsável da liberdade de crer, ou não-crer, e até de criticar quem crê, ou não crê, não legitima a gratuita agressão religiosa ou ideológica. Todas as ideias são discutíveis, mesmo as mais sagradas, mas todas as pessoas, salvo prova em contrário, são respeitáveis. Ora, segundo o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, a blasfémia é «um dito considerado ofensivo, ultrajante em relação à divindade ou à religião», ou um «dito ou comportamento gravemente ofensivo para com uma pessoa ou coisa digna de muito respeito» (vol I, pág. 540).
Um acto terrorista não pode ser branqueado de jeito nenhum. Não há justificação para um crime hediondo, que não pode ser instrumentalizado politicamente pelos que pretendem implementar políticas xenófobas e racistas. Nenhum insulto pode legitimar um crime contra a liberdade e os direitos humanos, por muito censurável que seja a blasfémia, do ponto de vista ético, pelo seu carácter essencialmente ofensivo. Não se vence o terrorismo com terrorismo de sentido contrário, mas com a defesa intransigente da liberdade, de acordo com os princípios e práticas do estado de direito.
A blasfémia não é a causa do crime, nem a sua ocasião, apenas o seu pretexto. Dê-se a todos os crentes de todas as religiões, que entendem ameaçada a sua liberdade religiosa, a possibilidade de accionar as correspondentes garantias do Estado democrático. Mas não se admita a perda da liberdade de pensamento e de expressão, nem se consinta que os terroristas legitimem as suas acções em nome da religião. O crime não admite nenhuma justificação.
P. Gonçalo Portocarrero de Almada
Fonte: Observador
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