Com a elevação ao cardinalato do patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, cumpre-se uma antiga tradição, qual é a de honrar com esta dignidade o arcebispo metropolita da capital portuguesa. Os cardeais são, por assim dizer, os mais próximos conselheiros do papa no governo eclesial e, por isso, é comum atribuir-lhes a designação de príncipes da Igreja. A uma tal honra está associada a inerente responsabilidade e uma série de prerrogativas, algumas já caídas em desuso e outras – como o tratamento de ‘eminência’, a cor encarnada das vestes corais, etc. – ainda vigentes, embora talvez pareçam anacrónicas, senão mesmo em contradição com a pobreza evangélica, para a qual tão fortemente tem apelado o Papa Francisco.
Com efeito, o actual pontífice romano, depois de eleito, teve de escolher o nome que passaria a usar como sucessor do apóstolo Pedro. Como o prelado que se sentara a seu lado, durante o conclave, lhe sugerira que, no seu pontificado, não se esquecesse dos pobres, Jorge Bergoglio escolheu para si o nome de Francisco. Sendo jesuíta, houve quem pensasse que se referia a S. Francisco Xavier, o missionário da Companhia de Jesus que foi apóstolo na Índia e no Extremo Oriente. Mas depressa o sucessor de Bento XVI esclareceu que a razão do seu novo nome se prendia, não com este Francisco, mas com o de Assis. Advertiu também que queria uma Igreja pobre e, para frisar a necessidade do desprendimento, foi o primeiro a dar exemplo: usando uma cruz peitoral e um anel de prata, em vez do ouro que usaram os seus antecessores; trocando o apartamento pontifício por um quarto na casa de S. Marta; substituindo a limousine papal por um carro utilitário; prescindindo da residência de verão dos papas, em Castel Gandolfo, etc.
No contexto de uma Igreja pobre e para os pobres, não seria também lógico que se suprimisse a dignidade cardinalícia, cujas honras principescas parecem destoar da pobreza evangélica que o papa quer para si próprio e para todos os seus colaboradores, a começar pelos mais próximos? Sendo o colégio cardinalício de origem eclesiástica, nada obsta à sua eventual eliminação, que não poderia realizar-se se, porventura, fosse de instituição divina, como é, por exemplo, o episcopado. Portanto, da mesma forma como a Igreja entende que não pode aceitar a ordenação de mulheres, porque para tal não está mandatada pelo seu divino Mestre, também deveria entender que não se justifica a dignidade cardinalícia, que também não tem fundamento evangélico.
Se é salutar que todos os ministros ordenados, sejam eles diáconos, padres ou bispos, imitem a vida pobre, casta e obediente de Cristo, também convém que os cardeais procurem seguir o mesmo exemplo. Nem sempre foi assim – pense-se, por exemplo, nos cardeais Richelieu e Mazarino – mas há muito que, graças a Deus, as pompas e honrarias mundanas de que se rodeavam esses príncipes da Igreja deram lugar a um exercício mais sóbrio e evangélico da sua dignidade. Mas proceder à sua extinção não se justificaria, não só porque obrigaria a uma revisão do procedimento previsto para a escolha do sucessor de São Pedro, agora eleito pelos purpurados com menos de oitenta anos, mas também porque seria prejudicial para a colegialidade da Igreja. A colaboração dos bispos no governo eclesial universal ocorre por via dos concílios ecuménicos e dos sínodos mas, como estes eventos têm carácter extraordinário, é sobretudo através da participação habitual dos cardeais nos diversos departamentos do governo central da Igreja que se assegura essa colegialidade.
O Papa Francisco, ao universalizar o colégio cardinalício, tem procurado garantir a sua representatividade. Ao nomear cardeais alguns bispos de dioceses periféricas e de menos recursos, em detrimento dos provenientes de sedes episcopais a que tradicionalmente estava anexa a púrpura, o Bispo de Roma promove o regresso à simplicidade e pobreza evangélica do sacro colégio, ao mesmo tempo que valoriza as qualidades pessoais dos bispos que eleva à condição de seus mais próximos conselheiros e colaboradores na pastoral da Igreja católica.
Neste sentido, a eleição do patriarca de Lisboa justifica-se plenamente, não tanto pelo antigo privilégio da mitra olisiponense, mas pelos méritos pastorais – é bispo de Lisboa depois de o ter sido do Porto, as duas mais importantes cidades portuguesas – e pessoais – recorde-se que, entre outras muitas distinções, ganhou o prémio Pessoa – que atestam a excepcional valia eclesial e intelectual do agora novo cardeal.
Na realidade, não é só o titular da sé lisbonense, ou a arquidiocese da capital, ou a Igreja portuguesa que estão de parabéns, mas todo o país. Este reconhecimento papal dos méritos do presidente da conferência episcopal portuguesa e patriarca de Lisboa é uma grande honra para Portugal.
P. Gonçalo Portocarrero de Almada
Fonte: Observador
Com efeito, o actual pontífice romano, depois de eleito, teve de escolher o nome que passaria a usar como sucessor do apóstolo Pedro. Como o prelado que se sentara a seu lado, durante o conclave, lhe sugerira que, no seu pontificado, não se esquecesse dos pobres, Jorge Bergoglio escolheu para si o nome de Francisco. Sendo jesuíta, houve quem pensasse que se referia a S. Francisco Xavier, o missionário da Companhia de Jesus que foi apóstolo na Índia e no Extremo Oriente. Mas depressa o sucessor de Bento XVI esclareceu que a razão do seu novo nome se prendia, não com este Francisco, mas com o de Assis. Advertiu também que queria uma Igreja pobre e, para frisar a necessidade do desprendimento, foi o primeiro a dar exemplo: usando uma cruz peitoral e um anel de prata, em vez do ouro que usaram os seus antecessores; trocando o apartamento pontifício por um quarto na casa de S. Marta; substituindo a limousine papal por um carro utilitário; prescindindo da residência de verão dos papas, em Castel Gandolfo, etc.
No contexto de uma Igreja pobre e para os pobres, não seria também lógico que se suprimisse a dignidade cardinalícia, cujas honras principescas parecem destoar da pobreza evangélica que o papa quer para si próprio e para todos os seus colaboradores, a começar pelos mais próximos? Sendo o colégio cardinalício de origem eclesiástica, nada obsta à sua eventual eliminação, que não poderia realizar-se se, porventura, fosse de instituição divina, como é, por exemplo, o episcopado. Portanto, da mesma forma como a Igreja entende que não pode aceitar a ordenação de mulheres, porque para tal não está mandatada pelo seu divino Mestre, também deveria entender que não se justifica a dignidade cardinalícia, que também não tem fundamento evangélico.
Se é salutar que todos os ministros ordenados, sejam eles diáconos, padres ou bispos, imitem a vida pobre, casta e obediente de Cristo, também convém que os cardeais procurem seguir o mesmo exemplo. Nem sempre foi assim – pense-se, por exemplo, nos cardeais Richelieu e Mazarino – mas há muito que, graças a Deus, as pompas e honrarias mundanas de que se rodeavam esses príncipes da Igreja deram lugar a um exercício mais sóbrio e evangélico da sua dignidade. Mas proceder à sua extinção não se justificaria, não só porque obrigaria a uma revisão do procedimento previsto para a escolha do sucessor de São Pedro, agora eleito pelos purpurados com menos de oitenta anos, mas também porque seria prejudicial para a colegialidade da Igreja. A colaboração dos bispos no governo eclesial universal ocorre por via dos concílios ecuménicos e dos sínodos mas, como estes eventos têm carácter extraordinário, é sobretudo através da participação habitual dos cardeais nos diversos departamentos do governo central da Igreja que se assegura essa colegialidade.
O Papa Francisco, ao universalizar o colégio cardinalício, tem procurado garantir a sua representatividade. Ao nomear cardeais alguns bispos de dioceses periféricas e de menos recursos, em detrimento dos provenientes de sedes episcopais a que tradicionalmente estava anexa a púrpura, o Bispo de Roma promove o regresso à simplicidade e pobreza evangélica do sacro colégio, ao mesmo tempo que valoriza as qualidades pessoais dos bispos que eleva à condição de seus mais próximos conselheiros e colaboradores na pastoral da Igreja católica.
Neste sentido, a eleição do patriarca de Lisboa justifica-se plenamente, não tanto pelo antigo privilégio da mitra olisiponense, mas pelos méritos pastorais – é bispo de Lisboa depois de o ter sido do Porto, as duas mais importantes cidades portuguesas – e pessoais – recorde-se que, entre outras muitas distinções, ganhou o prémio Pessoa – que atestam a excepcional valia eclesial e intelectual do agora novo cardeal.
Na realidade, não é só o titular da sé lisbonense, ou a arquidiocese da capital, ou a Igreja portuguesa que estão de parabéns, mas todo o país. Este reconhecimento papal dos méritos do presidente da conferência episcopal portuguesa e patriarca de Lisboa é uma grande honra para Portugal.
P. Gonçalo Portocarrero de Almada
Fonte: Observador
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