terça-feira, 6 de agosto de 2019

Alforria de escravas e cidadania antiga portuguesa

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Há quem continue a fintar os arquivos e os documentos para construir ideologia, desfigurando o labor historiográfico e substituindo-o por uma amálgama de pseudo-verdades anti-científicas, umas involuntárias e ingénuas, outras marcadas pela desonestidade e pela má-fé. Um dos mais recorrentes mitos em torno da escravatura é o da "lei do ventre"(1), ou seja, aquela que supostamente amarraria a prole dos escravos à escravatura. Filhos de pais escravos, escravos seriam os seus descendentes. 

Contudo, tal não foi a prática comum. Em 15 de Janeiro de 1515, o Rei D. Manuel I determinava que cada colono da ilha de São Tomé que se juntasse com uma escrava negra e que os filhos dessa relação seriam livres, tal como a mãe. Tal medida não se circunscrevia aos filhos de homens livres e escravas, mas igualmente aos resultantes de relações entre mulheres branças e escravos negros. Neste caso, o pai das crianças, assim como os seus filhos, seriam livres.

Em 1521, nas Ordenações, decretava-se que os filhos naturais de um homem solteiro e de uma escrava, passariam doravante a ter direito à herança de todos os bens do pai natural. O nascimento de comunidades crioulas em Cabo-Verde e, depois, em São Tomé e Príncipe relaciona-se com esta política de alforria generalizada pelo ventre. Em finais do século XVII, a classe dirigente destas sociedades luso-africanas era inteiramente composta por mestiços descendentes de escravas negras. Ocupando funções de relevo na administração concelhia, no comando de milícias e até provendo os mais altos postos eclesiásticos, tais comunidades haviam há muito superado o drama da escravidão e eram, pois, os donos da terra que era a sua. 

MCB

Para mais informação, consultar a obra de Arlindo Manuel Caldeira: Mulheres, Sexualidade e Casamento em São Tomé e Príncipe: Séculos XV a XVIII (1999), «As Mulheres no Quotidiano na Ilha de São Tomé nos Séculos XV e XVI», in O rosto feminino da expansão portuguesa. Lisboa: Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres, 1995.

(1) Não confundir com a "lei do ventre livre", lei abolicionista de 1871 que concedia alforria automática a todas as crianças nascidas de mãe escrava.

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