Na imagem, uma alegoria do século XVIII ao Império português. Na legenda pode ler-se, em latim, "Império da Religião e da Justiça". |
Se o que nos pedem é histeria auto-penitencial, remorso pelo que de grande fizemos e desculpas a todo o embaixador, ministro e dignitário dos povos com que nos cruzámos ao longo da História, recusamos educadamente o pedido. Não há dúvida de que os portugueses praticaram violências - a violência é da natureza dos impérios, e fatalidade da vida. Sem conquista, não teria havido Pérsia, mas é à Pérsia que devemos as primeiras grandes redes de comunicações, a noção de direitos básicos e a arte de integrar num só Estado a povos diversos e de distinta tradição. Sem conquista não teria havido Grécia, e desconheceríamos hoje a Platão e a Aristóteles; não teria havido Roma, nem nos teria chegado a sua luminosa herança. Mao Tsé-Tung dizia que o "poder nasce do cano do fuzil". Os impérios fazem-se pela guerra, e o nosso não foi nisso excepção.
O que distingue os portugueses e a sua obra não foram tanto os seus meios quanto os seus propósitos. É que, certamente ao contrário de holandeses e ingleses, os portugueses não fizeram os Descobrimentos e a «Expansão» por sede de dinheiros - ou, pelo menos, não os fizeram somente com esse objectivo. Sim, houve portugueses animados pela cobiça, que é pecado comum a todos os tempos e a todas as nacionalidades. Mas a construção do nosso império, hoje objecto de tantas críticas, obedeceu verdadeiramente a ideias mais latas que aquelas que podem ser colocadas numa carteira. Talvez essa noção surja peculiar ao cínico homem do nosso tempo; talvez lhe custe, a ele que vive para o dinheiro, o carro novo, as férias e o telemóvel de nova geração, acreditar que outros homens noutros tempos matassem e se deixassem matar por Deus e pelo Rei. E, contudo, foi justamente essa a bússola por que se guiaram os portugueses construtores de impérios. Francisco de Almeida ou Afonso de Albuquerque não eram particularmente ricos quando partiram para as Índias, e nenhum dos dois voltou da Ásia para vidas de confortos: Almeida morreu perto do Cabo da Boa Esperança em 1510, e Albuquerque faleceu em Goa entristecido com a ingratidão do Rei e as intrigas da corte.
O império português foi europeu de origem, mas não foi como os restantes impérios europeus. A Inglaterra colonizou a Jamaica com um pirata (o infame Henry Morgan), a América através da escravização e deportação de irlandeses e escoceses (a Indentured Servitude) e a Índia recorrendo a um traficante (Pitt). A Holanda ocupou o Brasil com mercenários pagos por banqueiros; além-mar, não era um império, mas um par de grandes companhias comerciais. A sua preocupação era o lucro rápido, não lhe interessando questões de civilização. Eram, um e o outro, impérios de flibusteiros, de bandidos reconciliados com a lei, de oportunistas e ladrões transformados em "comerciantes". Existiam para o "business" - business, de resto, frequentemente sujo - e mais coisa nenhuma. Já o império português, com os defeitos que certamente teve, foi coisa em tudo diferente: era um império de padres e aristocratas, de homens comprometidos com um código de cavalaria e o serviço da Cristandade. Por isso se encarregaram os portugueses de banir a queima ritual de viúvas na Índia logo no século XVI, quando os ingleses só fariam o mesmo trezentos anos mais tarde; por isso tratou o missionário de libertar o indígena brasileiro da sua vida tradicional, em que a antropofagia era comum e a vida sempre incerta; por isso se criaram em todos os nossos domínios missões e aldeamentos em que os locais, cristianizados e aportuguesados, pudessem tornar-se súbditos de primeira dignidade do Rei de Portugal. Por isso o Império ergueu a maior catedral da Ásia em Goa, e fez as primeiras instituições de tipo universitário daquele continente. Por isso o Império não arredou pé da Índia, onde tinha cristãos a proteger, mesmo quando os nossos domínios no subcontinente deixaram de ser claramente lucrativos. Por isso Portugal abdicou de relevantes oportunidades comerciais, como no Japão, sempre que os negócios pareceram colidir com as suas ambições de evangelização. Portugal era um império de escrúpulos e com uma missão moral. Aí não residiu sempre a sua força - mas é essa a verdadeira razão da sua grandeza.
Leandro de Faria
Nova Portugalidade
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